João Simão Lopes Neto
A MBOITATÁ
I
FOI ASSIM:
PUBLICIDADE
num tempo muito antigo, muito, houve uma noite tão comprida que pareceu que nunca mais haveria luz do dia.
Noite escura como breu, sem lume no céu, sem vento, sem serenada e sem rumores, sem cheiro dos pastos maduros nem das flores da mataria.
Os homens viveram abichornados, na tristeza dura; e porque churrasco não havia, não mais sopravam labaredas nos fogões e passavam comendo canjica insossa; os borralhos estavam se apagando e era preciso poupar os tições…
Os olhos andavam tão enfarados da noite, que ficavam parados, horas e horas, olhando, sem ver as brasas vermelhas do nhanduvai… as brasas somente, porque as faíscas, que alegram, não saltavam, por falta do sopro forte de bocas contentes.
Naquela escuridão fechada nenhum tapejara seria capaz de cruzar pelos trilhos do campo, nenhum flete crioulo teria faro nem ouvido nem vista para bater na querência; até nem sorro daria no seu próprio rastro!
E a noite velha ia andando… ia andando…
II
Minto:
no meio do escuro e do silêncio morto, de vez em quando, ora duma banda ora doutra, de vez em quando uma cantiga forte, de bicho vivente, furava o ar; era o téu-téu ativo, que não dormia desde o entrar do último sol e que vigiava sempre, esperando a volta do sol novo, que devia vir e que tardava tanto já…
Só o téu-téu de vez em quando cantava; o seu – quero-quero! – tão claro, vindo de lá do fundo da escuridão, ia agüentando a esperança dos homens, amontoados no redor avermelhado das brasas.
Fora disto, tudo o mais era silêncio; e de movimento, então, nem nada.
III
Minto:
na última tarde em que houve sol, quando o sol ia descambando para o outro lado das coxilhas, rumo do minuano, e de onde sobe a estrela-d’alva, nessa última tarde também desabou uma chuvarada tremenda; foi uma manga d’água que levou um tempão a cair, e durou… e durou…
Os campos foram inundados; as lagoas subiram e se largaram em fitas coleando pelos tacuruzais e banhados, que se juntaram, todos, num; os passos cresceram e todo aquele peso d’água correu para as sangas e das sangas para os arroios, que ficaram bufando, campo fora, campo fora, afogando as canhadas, batendo no lombo das coxilhas. E nessas coroas e que ficou sendo o paradouro da animalada, tudo misturado, no assombro. E era terneiros e pumas, tourada e potrilhos, perdizes e guaraxains, tudo amigo, de puro medo. E então!…
Nas copas dos butiás vinham encostar-se bolos de formigas; as cobras se enroscavam na enrediça dos aguapés; e nas estivas do santa-fé e das tiriricas, boiavam os ratões e outros miúdos.
E, como a água encheu todas as tocas, entrou também na da cobra-grande, a – boiguaçu – que, havia já muitas mãos de luas, dormia quieta, entanguida. Ela então acordou-se e saiu, rabeando.
Começou depois a mortandade dos bichos e a boiguaçu pegou a comer as carniças. Mas só comia os olhos e nada, nada mais.
A água foi baixando, a carniça foi cada vez engrossando, e a cada hora mais olhos a cobra-grande comia.
IV
Cada bicho guarda no corpo o sumo do que comeu.
A tambeira que só come trevo maduro dá no leite o cheiro do milho verde; o cerdo que come carne de bagual nem alqueires de mandioca o limpam bem; e o socó tristonho o biguá matreiro até no sangue têm cheiro de pescado. Assim também, nos homens, que até sem comer nada, dão nos olhos a cor de seus arrancos. O homem de olhos limpos guapo e mão-aberta; cuidado com os vermelhos; mais cuidados com os amarelos; e, toma tendência doble com os raiados e baços!…
Assim foi também, mas doutro jeito, com a boiguaçu, que tantos olhos comeu.
V
Todos – tantos, tantos! que a cobra-grande comeu -, lavam, entranhado e luzindo, um rastilho da última luz eles viram do último sol, antes da noite grande que caiu…
E os olhos – tantos, tantos! – com um pingo de luz cada um, foram sendo devorados; no principio um punhado, ao depois uma porção, depois um bocadão, depois, como uma braçada…
VI
E vai,
como a boiguaçu não tinha pêlos como o boi, nem escamas o dourado, nem penas como o avestruz, nem casca como o tatu, nem couro grosso como a anta, vai, o seu corpo foi ficando transparente, transparente, clareado pelos miles de luzezinhas, dos tantos olhos que foram esmagados dentro dele, deixando cada qual sua pequena réstia de luz. E vai, afinal, a boiguaçu toda já era uma luzerna, um clarão sem chamas, já era um fogaréu azulado, de luz amarela e triste e fria, saída dos olhos, que fora guardada neles, quando ainda estavam vivos…
VII
Foi assim e foi por isso que os homens, quando pela vez primeira viram a boiguaçu tão demudada, não a conheceram mais. Não conheceram e julgando que era outra, muito outra, chamam-na desde então, de boitatá, cobra de fogo, boitatá, a boitatá!
E muitas vezes a boitatá rondou as rancherias, faminta, sempre que nem chimarrão. Era então que o téu-téu cantava, como bombeiro.
E os homens, por curiosos, olhavam pasmados, para aquele grande corpo de serpente, transparente – tatá, de fogo – que media mais braças que três laços de conta e ia alumiando baçamente as carquejas… E depois, choravam. Choravam, desatinados do perigo, pois as suas lágrimas também guardavam tanta ou mais luz que só os olhos e a boitatá ainda cobiçava os olhos vivos dos homens, que já os das carniças a enfartavam…
VIII
Mas, como dizia:
na escuridão só avultava o clarão baço do corpo da boitatá, e era por ela que o téu-téu cantava de vigia, em todos os flancos da noite.
Passado uni tempo, a boitatá morreu; de pura fraqueza morreu, porque os olhos comidos encheram-lhe o corpo mas não lhe deram sustância, pois que sustância não tem a luz que os olhos em si entranhada tiveram quando vivos…
Depois de rebolar-se rabiosa nos montes de carniça, sobre os couros pelados, sobre as carnes desfeitas, sobre as cabelamas soltas, sobre as ossamentas desparramadas, o corpo dela desmanchou-se, também como cousa da terra, que se estraga de vez.
E foi então, que a luz que estava presa se desatou por aí. E até pareceu cousa mandada: o sol apareceu de novo!
IX
Minto:
apareceu sim, mas não veio de supetão. Primeiro foi-se adelgaçando o negrume, foram despontando as estrelas; e estas se foram sumindo no cobreado do céu; depois foi sendo mais claro, mais claro, e logo, na lonjura, começou a subir uma lista de luz… depois a metade de uma cambota de fogo… e já foi o sol que subiu, subiu, subiu, até vir a pino e descambar, como dantes, e desta feita, para igualar o dia e a noite, em metades, para sempre.
X
Tudo o que morre no mundo se junta à semente de onde nasceu, para nascer de novo: só a luz da boitatá ficou sozinha, nunca mais se juntou com a outra luz de que saiu.
Anda sempre arisca e só, nos lugares onde quanta mais carniça houve, mais se infesta. E no inverno, de entanguida, não aparece e dorme, talvez entocada.
Mas de verão, depois da quentura dos mormaços, começa então o seu fadário.
A boitatá, toda enroscada, como uma bola – tatá, de fogo! – empeça a correr o campo, coxilha abaixo, lomba acima, até que horas da noite!…
É um fogo amarelo azulado, que não queima a macega seca nem aquenta a água dos manantiais; e rola, gira, corre, corcoveia e se despenca e arrebenta-se, apagando… e quando um menos espera, aparece, outra vez, do mesmo jeito!
Maldito! Tesconjuro!
XI
Quem encontra a boitatá pode até ficar cego… Quando alguém topa com ela só tem dois meios de se livrar: ou ficar parado, muito quieto, de olhos fechados apertados e sem respirar, até ir-se ela embora, ou, se anda a cavalo, desenrodilhar o laço, fazer uma armada grande e atirar-lha em cima, e tocar a galope, trazendo o laço de arrasto, todo solto, até a ilhapa!
A boitatá vem acompanhando o ferro da argola… mas de repente, batendo numa macega, toda se desmancha, e vai esfarinhando a luz, para emulitar-se de novo, com vagar, na aragem que ajuda.
XII
Campeiro precatado! reponte o seu gado da querência da boitatá: o pastiçal, aí, faz peste…
Tenho visto!
A SALAMANCA DO JARAU
ERA UM DIA…
um dia, um gaúcho pobre, Blau, de nome, guasca de bom porte, mas que só tinha de seu um cavalo gordo, o facão afiado e as estradas reais, estava conchavado de posteiro, ali na entrada do rincão; e nesse dia andava campeando um boi barroso.
E no tranqüito andava, olhando; olhando para o fundo das sangas, para o alto das coxilhas, ao comprido das canhadas; talvez deitado estivesse entre as carquejas – a carqueja é sinal de campo bom -, por isso o campeiro às vezes alçava-se nos estribos e, de mão em pala sobre os olhos, firmava mais a vista em torno; mas o boi barroso, crioulo daquela querência, não aparecia; e Blau ia campeando, campeando…
Campeando e cantando:
«Meu bonito boi barroso.
Que eu já contava perdido,
Deixando o rastro na areia
Foi logo reconhecido.
«Montei no cavalo escuro
E trabalhei logo de espora;
E gritei ─ aperta, gente.
Que o meu boi se vai embora!
«No cruzar uma picada,
Meu cavalo relinchou.
Dei de rédea para a esquerda,
E o meu boi me atropelou!
«Nos tentos levava um laço
De vinte e cinco rodilhas,
Pra laçar o boi barroso
Lá no alto das coxilhas!
«Mas no mato carrasqueiro
Onde o boi ‘stava embretado,
Não quis usar o meu laço,
Pra não vê-lo retalhado.
«E mandei fazer um laço
Da casca do jacaré,
Pra laçar meu boi barroso
Num redomão pangaré.
«E mandei fazer um laço
Do couro da jacutinga,
Pra laçar meu boi barroso
Lá no passo da restinga.
«E mandei fazer um laço
Do couro da capivara
Pra laçar meu boi barroso
Nem que fosse a meia-cara;
«Este era um laço de sorte,
Pois quebrou do boi a balda “…
…………………………………………..
………………………………………….
No tranqüito ia, cantando, e pensando na sua pobreza, no atraso das suas cousas.
No atraso das suas cousas, desde o dia em que topou – cara a cara! – com o Caipora num campestre da serra grande, pra lá, muito longe, no Botucaraí…
A lua ia recém-saindo…; e foi à boquinha da noite…
Hora de agouro, pois então!…
Gaúcho valente que era dantes, ainda era valente, agora; mas, quando cruzava o facão com qualquer paisano, o ferro da sua mão ia mermando e o do contrário o lanhava…
Domador destorcido e parador, que por só pabulagem gostava de paletear, ainda era domador, agora; mas, quando gineteava mais folheiro, às vezes, num redepente, era volteado…
De mão feliz para plantar, que lhe não chocava semente nem muda de raiz se perdia, ainda era plantador, agora; mas, quando a semeadura ia apontando da terra, dava a praga em toda, tanta, que benzedura não vencia…; e o arvoredo do seu plantio crescia entecado e mal floria, e quando dava fruta, era mixe e era azeda…
E assim, por esse teor, as cousas corriam-lhe mal; e pensando nelas o gaúcho pobre, Blau, de nome, ia, ao tranqüito, campeando, sem topar coo boi barroso.
De repente, na volta duma reboleira, bem na beirada dum boqueirão sofrenou o tostado…; ali em frente, quieto e manso, estava um vulto, de face tristonha e mui branca.
Aquele vulto de face branca… aquela face tristonha!…
Já ouvira falar dele, sim, não uma nem duas, mas muitas vezes…; e de homens que o procuravam, de todas as pintas, vindos de longe, num propósito, para endrôminas de encantamentos…,conversas que se falavam baixinho, como num mêdo; pro caso, os que podiam contar não contavam porque uns, desandavam apatetados e vagavam por aí, sem dizer cousa com cousa, e outros calavam-se muito bem calados, talvez por juramento dado…
Aquele vulto era o santão da salamanca do cerro.
Blau Nunes sofrenou o cavalo.
Correu-lhe um arrepio no corpo, mas era tarde para recuar: um homem é para outro homem !…
E como era ele
quem chegava, ele é que tinha de louvar; saudou:
– Laus’Sus-Cris’!…
– Para sempre, amém! disse o outro, e logo ajuntou: O boi barroso vai trepando cerro acima, vai trepando… Ele anda cumprindo o seu fadário…
Blau Nunes pasmou do adivinho; mas repostou:
– Vou no rastro!…
– Está enredado…
– Sou tapejara, sei tudo, palmo a palmo, até à boca preta da furna do cerro…
– Tu… tu, paisano, sabes a entrada da salamanca?…
– É lá?… Então, sei, sei! A salamanca do cerro do Jarau!… Desde a minha avó charrua, que ouvi falar!…
– O que contava a tua avó?
– A mãe da minha mãe dizia assim:
II
– Na terra dos espanhóis, do outro lado do mar, havia uma cidade chamada – Salamanca – onde viveram os mouros, os mouros que eram mestres nas artes de magia; e era numa furna escura que eles guardavam o condão mágico, por causa da luz branca do sol, que diz que desmancha a força da bruxaria…
O condão estava no regaço duma fada velha, que era uma princesa moça, encantada, e bonita, bonita como só ela!…
Num mês de quaresma os mouros escarneceram muito do jejum dos batizados, e logo perderam uma batalha muito pelejada; e vencidos foram obrigados a ajoelharem-se ao pé da Cruz Bendita… e a baterem nos peitos, pedindo perdão…
Então, depois, alguns, fingidos de cristãos, passaram o mar e vieram dar nestas terras sossegadas, procurando riquezas, ouro, prata, pedras finas, gomas cheirosas… riquezas para levantar de novo o seu poder e alçar de novo a Meia-Lua sobre a Estrela de Belém…
E para segurança das suas tranças trouxeram escondida a fada velha, que era a sua formosa princesa moça…
E devia ter mesmo muita força o condão, porque nem os navios se afundaram, nem os frades de bordo desconfiaram, nem os próprios santos que vinham, não sentiram…
Nem admira, porque o condão das mouras encantadas sempre aplastou a alma dos frades e não se importa com os santos do altar, porque esses são só imagens…
Assim bateram nas praias da gente pampiana os tais mouros e mais outros espanhóis renegados. E como eles eram, todos, de alma condenada, mal puseram pé em terra, logo na meia-noite da primeira sexta-feira foram visitados pelo mesmo Diabo deles, que neste lado do mundo era chamado de Anhangá-pitã e mui respeitado. Então, mouros e renegados disseram ao que vinham; e Anhangá-pitã folgou muito; folgou, porque a gente nativa daquelas campanhas e a destas serras era gente sem cobiça de riquezas, que só comia a caça, o peixe, a fruta e as raízes que Tupã despejava sem conta, para todos, das suas mãos sempre abertas e fazedoras…
Por isso Anhangá-pitã folgou, porque assim minava para o peito dos inocentes as maldades encobertas que aqueles chegados traziam…; e pois, escutando o que eles ambicionavam para vencer a Cruz com a força do Crescente, o maldoso pegou do condão mágico – que navegara em navio bento e entre frades rezadores e santos milagrosos -, esfregou-o no suor do seu corpo e virou-o em pedra transparente; e lançando o bafo queimaste do seu peito sobre a fada moura, demudou-a em teiniaguá, sem cabeça. E por cabeça encravou então no novo corpo da encantada a pedra, aquela, que era o condão, aquele.
E como já era sobre a madrugada, no crescimento da primeira luz do dia, do sol vermelho que ia querendo romper dos confins por sobre o mar, por isso a cabeça de pedra transparente ficou vermelha como brasa e tão brilhante que olhos de gente vivente não podiam parar nela, ficando encandeados, quase cegos!…
E desfez-se a companha até o dia da peleja da nova batalha. E chamaram – salamanca – à furna desse encontro; e o nome ficou pras furnas todas, em lembrança da cidade dos mestres mágicos.
Levantou-se um ventarrão de tormenta e Anhangá-pitã, trazendo num bocó a teiniaguá, montou nele, de salto, e veio correndo sobre a correnteza do Uruguai, por léguas e léguas, até as suas nascentes, entre serranias macotas.
Depois, desceu, sempre com ela; em sete noites de sexta-feira ensinou-lhe a vaqueanagem de todas as furnas recamadas de tesouros escondidos… escondidos pelos cauilas, perdidos para os medrosos e achadios de valentes… E a mais desses, muitos outros tesouros que a terra esconde e que só os olhos dos zaoris podem vispar…
Então Anhangá-pitã, cansado, pegou num cochilo pesado, esperando o cardume das desgraças novas, que deviam pegar pra sempre…
Só não tomou tenência que a teiniaguá era mulher…
Aqui está tudo o que eu sei, que a minha avó charrua contava à minha mãe, e que ela já ouviu, como cousa velha, contar por outros, que, esses viram!…
E Blau Nunes bateu o chapéu para o alto da cabeça, deu um safanão no cinto, aprumando o facão…; foi parando o gesto e ficou-se olhando, sem mira, para muito longe, para onde a vista não chegava, mas onde o sonho acordado que havia nos seus olhos chegava de sobra e ainda passava… ainda passava, porque o sonho não tem lindeiros nem tapumes…
Falou então
o vulto de face branca e tristonha; falou em voz macia. E disse assim:
III
É certo:
não tomou tenência que a teiniaguá era mulher… Ouve, paisano.
No costado da cidade onde eu vivia havia uma lagoa, larga e funda, com uma ilha de palmital, no meio. Havia uma lagoa…
A minha cabeça foi banhada na água benta da pia, mas nela entraram soberbos pensamentos maus… O meu peito foi ungido com os santos óleos, mas nele entrou a doçura que tanto amarga, do pecado…
A minha boca provou do sal piedoso… e nela entrou a frescura que requeima, dos beijos da tentadora…
Mas assim era o fado…, tempo e homem virão para me libertar, quebrando o encantamento que me amarra, duzentos anos hão de findar; eu esperei no entanto vivendo na minha tristeza
seca, tristeza de arrependido que não chora.
Tudo o que volteia no ar tem seu dia de aquietar-se no chão…
Era eu que cuidava dos altares e ajudava a missa dos santos padres da igreja de S. Tomé, do lado ao poente do grande rio Uruguai. Sabia bem acender os círios, feitos com a cera virgem das abelheiras da serra; e bem balançar o turíbulo, fazendo ondear a fumaça cheirosa do rito; e bem tocar a santos, na quina do altar, dois degraus abaixo, à direita do padre; e dizia as palavras do missal; e nos dias de festa sabia repicar o sino; e bater as horas, e dobrar a finados… Eu era o sacristão.
Um dia na hora do mormaço, todo o povo estava nas sombras, sesteando; nem voz grossa de homem, nem cantoria das moças, nem choro de crianças: tudo sesteava. O sol faiscava nos pedregulhos lustrosos, e a luz parecia que tremia, peneirada, no ar parado, sem uma viração.
Foi nessa hora que eu saí da igreja, pela portinha da sacristia, levando no corpo a frescura da sombra benta, levando na roupa o cheiro da fumaça piedosa. E saí sem pensar em nada, nem de bem nem de mal; fui andando, como levado…
Todo o povo sesteava, por isso ninguém viu.
A água da lagoa borbulhava toda, numa fervura, ronquejando tal e qual como uma marmita no borralho. Por certo que lá em baixo, dentro da terra, é que estaria o braseiro que levantava aquela fervura que cozinhava os juncos e as traíras e pelava as pernas dos socós e espantava todos os mais bichos barulhentos daquelas águas…
Eu vi, vi o milagre de ferver toda uma lagoa…, ferver, sem fogo que se visse!
A mão direita, pelo costume, andou para fazer o “Pelo-Sinal”… e parou, pesada como chumbo; quis rezar um “Credo”, e a lembrança dele recuou; e voltar, correr e mostrar o Santíssimo… e tanger o sino em dobre… e chamar o padre superior, tudo para esconjurar aquela obra do inferno… e nada fiz… nada fiz, sem força na vontade, nada fiz… nada fiz, sem governo no corpo!…
E fui andando, como levado, para de mais perto ver, e não perder de ver o espantoso…
Porém logo outra força acalmou tudo; apenas a água fumegante continuou retorcendo os lodos remexidos, onde boiava toda uma mortandade dos viventes que morrem sem gritar…
Era no fim de um lançante comprido, estrada batida e limpa, de todos os dias as mulheres irem para a lavagem; e quando eu estava na beira da água, vendo o que estava vendo, então rompeu dela um clarão, maior que o da luz a pino do dia, clarão vermelho, como dum sol morrente, e que luzia desde o fundão da lagoa e varava a água barrenta…
E veio crescendo para a barranca, e saiu e tomou terra, e sem medo e sem ameaça veio andando para mim a sempre escapada maravilha…, maravilha que os que nunca viram juravam ser – verdade – e que eu, que estava vendo, ainda jurava ser – mentira! –
Era a teiniaguá, de cabeça
de pedra luzente, por sem dúvida; dela já tinha ouvido ao padre superior a história contada dum encontradiço que quase chegou de teimar em agarrá-la.
Entrecerrei os olhos, coando a vista, cautelando o perigo; mas a teiniaguá veio-se me chegando, deixando no chão duro um rastro d’água que escorria e logo secava, do seu corpinho verde de lagartixa engraçada e buliçosa…
Lembrei-me – como quem olha dentro duma cerração -, lembrei-me do que corria na voz da gente sobre o entangüimento que traspassa o nosso corpo na hora do encantamento: é como o azeite fino num couro ressequido…
Mas não perdi de todo a retentiva: pois que da água saía, é que na água viveria. Ali perto, entre os capins, vi uma guampa e foi o quanto agarrei dela e enchi-a na lagoa, ainda escaldando, e frenteei a teiniaguá que, da vereda que levava, entreparou-se, tremente, firmando nas patinhas da frente, a cabeça cristalina, como curiosa, faiscando…
De olhos apertados, piscando, para me não atordoar dum golpe de cegueira, assentei no chão a guampa e preparando o bote, num repente, entre susto e coragem, segurei a teiniaguá e meti-a para dentro dela!
Neste passo senti o coração como que martelar-me no peito e a cabeça sonando como um sino de catedral…
Corri para o meu quarto, na Casa-Grande dos santos padres. Entrei pelo cemitério, por detrás da igreja, e desatinado, derrubei cruzes, pisoteei ramos, calquei sepulturas!…
Todo o povo sesteava; por isso ninguém viu.
Fechei a guampa dentro da canastra e fiquei estatelado, pensando.
Pelo falar do padre superior eu bem sabia que quem prendesse a teiniaguá ficava sendo o homem mais rico do mundo; mais rico que o Papa de Roma, e o imperador Carlos Magno e o rei da Trebizonda e os Cavaleiros da Tábula…
Nos livros que eu lia, estes todos eram os mais ricos que se conhecia.
E eu, agora!…
E não pensei mais dentro da minha cabeça, não; era uma cousa nova e esquisita: eu via, com os olhos, os pensamentos diante deles, como se fossem cousas que se pudesse tentear com as mãos…
E foram se escancarando portas de castelos e palácios, onde eu entrava e saía, subia e descia escadarias largas, chegava às janelas, arredava reposteiros, deitava-me em camas grandes, de pés torneados, esbarrava-me em trastes que nunca tinha visto e servia-me em baixelas estranhas, que eu não sabia para o que prestavam…
E foram-se estendendo e alargando campos sem fim, perdendo o verde no azul das distâncias, e ainda lindando com outras estâncias que também eram minhas e todas cheias de gadaria, rebanhos e manadas…
.E logo cancheava erva nos meus ervais, cerrados e altos como mato virgem…
E atulhava de planta colhida – milho, feijão, mandioca – os meus paióis.
E detrás das minhas camas, em todos os quartos dos meus palácios amontoava surrões de ouro em pó e pilhotes de barras de prata; dependuradas na galhação de cem cabeças de cervos, tinha bolsas de couro e de veludo, atochadas de diamantes, brancos como gotas d’água filtrada em pedra, que os meus escravos – saídos mil, chegados dez -, tinham ido catar nas profundas do sertão, muito para lá duma cachoeira grande, em meia-lua, chamada de Iguaçu, muito pra lá doutra cachoeira grande, de sete saltos, chamada de Iguaíra…
Tudo isto eu media e pesava e contava, até cair de cansaço; e mal que respirava um descanso, de novamente, de novamente pegava a contar, a pesar, a medir…
Tudo isto eu podia ter – e tinha de meu, tinha! -, porque era o dono da teiniaguá, que estava presa dentro da guampa, fechada na canastra forrada de couro cru, tauxiada de cobre, dobradiças de bronze!…
Aqui ouvi o sino da torre badalando para a oração da meia-tarde…
Pela primeira vez não fui eu que toquei; seria um dos padres, na minha falta.
Todo o povo sesteava, por isso ninguém viu.
Voltei a mim. Lembrei-me de que o animalzinho precisava alimento,
Tranquei portas e janelas e sai para buscar um porongo de mel de lixiguana, por ser o mais fino.
E fui; melei; e voltei.
Abri sutil a porta e tornei a fechá-la ficando no escuro.
E quando descerrei a janela e andei para a canastra a tirar a guampa e libertar a teiniaguá para comer o mel, quando ia fazer isso, os pés se me enraizaram, os sentidos do rosto se arriscaram e o coração mermou no compassar o sangue!…
Bonita, linda, bela, na minha frente estava uma moça!…
Que disse:
IV
– Eu sou a princesa moura encantada, trazida de outras terras por sobre um mar que os meus nunca sulcaram… Vim, e Anhangá-pitã transformou-me em teiniaguá de cabeça luminosa, que outros chamam o – carbúnculo – e temem e desejam, porque eu sou a rosa dos tesouros escondidos dentro da casca do mundo…
Muitos têm me procurado com o peito somente cheio de torpeza, e eu lhes hei escapado das mãos ambicioneiras e dos olhos cobiçosos, relampejando desdenhosa o lume vermelho da minha cabeça transparente…
Tu, não; tu não me procuraste ganoso… e eu subi ao teu encontro; e me bem trataste pondo água na guampa e trazendo mel fino para o meu sustento.
Se quiseres, tu, todas as riquezas que eu sei, entrarei de novo na guampa e irás andando e me levarás onde eu te encaminhar, e serás senhor do muito, do mais, do tudo!…
A teiniaguá que sabe dos tesouros sou eu, mas sou também princesa moura…
Sou jovem… sou formosa…, o meu corpo é rijo e não tocado!…
E estava escrito que tu serias o meu par.
Serás o meu par… se a cruz do teu rosário me não esconjurar… Senão, serás ligado ao meu flanco, para, quando quebrado o encantamento, do sangue de nós ambos nascer uma nova gente, guapa e sábia, que nunca mais será vencida, porque terá todas as riquezas que eu sei e as que tu lhe carrearás por via dessas!…
Se a cruz do teu rosário não me esconjurar…
Sobre a cabeça da moura amarelejava nesse instante o crescente dos infiéis…
E foi se adelgaçando
no silêncio a cadência embalante da fala induzidora…
A cruz do meu rosário…
Fui passando as contas, apressado e atrevido, começando na primeira… e quando tenteei a última… e que entre as duas os meus dedos, formigando, deram com a Cruz do Salvador… fui levantando o Crucificado… bem em frente da bruxa, em salvatério… na altura do seu coração… na altura da sua garganta… da sua boca… na altura dos…
E aí parou, porque os olhos de amor, tão soberanos e cativos, em mil vidas de homem outros se não viram!…
Parou… e a minha alma de cristão foi saindo de mim, como o sumo se aparta do bagaço, como o aroma sai da flor que vai apodrecendo…
Cada noite
era meu ninho o regaço da moura; mas, quando batia a alva, ela desaparecia ante a minha face cavada de olheiras…
E crivado de pecados mortais, no adjutório da missa trocava os amém, e todo me estortegava e doía quando o padre lançava a bênção sobre a gente ajoelhada, que rezava para alívio dos seus pobres pecados, que nem pecados eram, comparados com os meus…
Uma noite ela quis misturar o mel do seu sustento com o vinho do santo sacrifício; e eu fui, busquei no altar o copo de ouro consagrado, todo lavorado de palmas e resplendores; e trouxe-o, transbordante, transbordando…
De boca para boca, por lábios incendiados o passamos… E embebedados caímos abraçados.
Sol nado, despertei:
estava cercado pelos santos padres.
Eu descomposto; no chão o copo, entornado; sobre o oratório, desdobrada, uma charpa de seda, lavrada de bordaduras exóticas, onde sobressaía uma meia-lua prendendo entre as aspas uma estrela… E acharam na canastra a guampa e no porongo o mel… e até no ar farejaram cheiro mulherengo… Nem tanto era preciso para ser logo jungido em manilhas de ferro.
Afrontei o arrocho da tortura, entre ossos e carnes amachucadas e unhas e cabelos repuxados. Dentro das paredes do segredo não havia fritos nem palavras grossas; os padres remordiam a minha alma, prometendo o inferno eterno e espremiam o meu arquejo, decifrando uma confissão…; mas a minha boca não falou…, não falou por senha firme da vontade, que não me palpitava confessar quem era ela e que era linda…
E raivado entre dois amargos desesperos não atinava sair deles: se das riquezas, que eu queria só pra mim, se do seu amor, que eu não queria que fosse senão meu, inteiro e todo!
Mas por senha da vontade a boca não falou.
Fui sentenciado a morrer pela morte do garrote, que é infame; condenado fui por ter dado passo errado com bicho imundo, que era bicho e mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira.
No adro e no largo da igreja, o povo ajoelhado batia nos peitos, clamando a morte do meu corpo e a misericórdia para a minha alma.
O sino começou dobrando a finados. Trouxeram-me em braços, entre alabardas e lanças, e um cortejo moveu-se, compassando a gente d’armas, os santos padres, o carrasco e o povaréu.
Dobrando a finados… dobrando a finados…
Era por mim.
V
E quando, sem mais esperança nos homens nem no socorro do céu, chorei uma lágrima de adeus à teiniaguá encantada, dentro do meu sofrer floreteou uma réstia de saudade do seu cativo e soberano , como em rocha dura serpenteia às vezes um fio de ouro alastrado e firme, como uma raiz que não quer morrer!…
E aquela saudade parece que saiu para fora do meu peito. subiu aos olhos feita em lágrima e ponteou para algum rumo, ao encontro doutra saudade rastreada sem engano… ; parece, porque nesse momento um ventarrão estourou sobre as águas da lagoa e a terra tremeu, sacudida, tanto, de as árvores desprenderem os seus frutos, de os animais estaquearem-se, medrosos, e de os homens caírem de co’cras, agüentando as armas, outros, de bruços tateando o chão…
E nas correntezas sem corpo, da ventania, redemoinhavam em chusma vozes guaranis, esbravejando se soltasse o padecente.
Para trás do cortejo, desfiando o som entre as poeiras grossas e folhas secas levantadas, continuava o sino dobrando a finados… dobrando a finados!…
Os santos padres, pasmados mas sisudos, rezavam encomendando a minha alma; em roda, boquejando, chinas, piás, índios velhos, soldados de couraça e lança, e o alcaide, vestido de samarra amarela com dois leões vermelhos e a coroa d’el-rei brilhando em canutilho de ouro…
A lágrima do adeus ficou suspensa, como uma cortina que embacia o claro ver: e o palmital da lagoa, o boleado das coxilhas, o recorte da serra, tudo isto, que era grande e sozinho cada um enchia e sobrava para os olhos limpos dum homem, tudo isso eu enxergava junto, empastalhado e pouco, espelhando-se na lágrima suspensa, que se encrespava e adelgaçava, fazendo franjas entre as pestanas balançantes dos meus olhos de condenado sem perdão…
A menos de braça, estava o carrasco atento no garrote!
Mas os olhos do meu pensamento, altanados e livres, esses, esses viam o corpo bonito, lindo, belo, da princesa moura, e recreavam-se na luz cegante da cabeça encantada da teiniaguá, onde reinavam os olhos dela, olhos de amor, tão soberanos e cativos como em mil vidas de homem outros se não viram!…
E por certo por essa força que nos ligava sem ser vista, como naquele dia em que o povo sesteava e também nada viu… por força dessa força, quanto mais os padres e alguazis ordenavam que eu morresse, mais pelo meu livramento forcejava o irado peito da encantada, não sei se de amor perdida pelo homem, se de orgulho perverso do perjuro, se da esperança de um dia ser humana…
O fogo dos borralhos foi-se alteando em labaredas e saindo pela quincha dos ranchos, sem queimá-los… ; as crianças de peito soltaram palavras feitas, como gente grande…; e bandadas de urubus apareceram e começaram a contradançar tão baixo, que se lhes ouvia o esfregar das penas contra o vento…, a contradançar, afiados para uma carniça que ainda não havia porém que havia de haver.
Mas os santos padres alinharam-se na sombra do Santíssimo e borrifaram de água benta o povo amedrontado; e seguiram, como num propósito, encomendando a minha alma; o alcaide levantou o pendão real e o carrasco varejou-me sobre o garrote, infâmia de minha morte, por ter tido amores com uma mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira…
Rolou, então, sobre o vento e nele foi a lágrima do adeus, que a saudade destilara.
Deu logo a lagoa um ronco bruto, nunca ouvido, tão dilatado e monstruoso… e rasgou-se cerce em um sangão medonho, entre largo e fundo… e lá no abismo, na caixa por onde ia já correndo, em borbotão, a água lamenta sujando as barrancas novas, lá, eu vi e todos viram a teiniaguá de cabeça de pedra transparente, fogachando luminosa como nunca, a teiniaguá correr, estrombando os barrocais, até rasgar, romper, arruir a boca do sangão na alta barranca do Uruguai, onde a correnteza em marcha despencou-se, espadanando em espumarada escura, como caudal de chuvas tormentosas!…
A gente levantou pro céu um vozear de lástimas e choros e gemidos.
– Que a Missão de S. Tomé ia perecer… e desabar a igreja… a terra expulsar os mortos do cemitério… que as crianças inocentes iam perder a graça do batismo… e as mães secar o leite… e as roças o plantio, os homens a coragem…
Depois um grande silêncio balançou-se no ar, como esperando…
Mas um milagre se fez: o Santíssimo, de si próprio, perpassou a altura das cousas, e lá em cima, cortou no ar turvado a Cruz Bendita!… O padre superior tremeu como em terçã e tartamudo e trôpego marchou para o povoado; os acólitos seguiram, e o alcaide, os soldados, o carrasco e a indiada toda desandou, como em procissão, emparvados, num assombro, e sem ter mais do que tremer, porque ventos, fogo, urubus e estrondos se humilharam, fenecendo, dominados!…
Fiquei sozinho, abandonado, e no mesmo lugar e mesmos ferros posto.
Fiquei sozinho, ouvindo com os ouvidos da minha cabeça as ladainhas que iam minguando, em retirada… mas também ouvindo com os ouvidos do pensamento o chamado carinhoso da teiniaguá; os olhos do meu rosto viam a consolação da graça de Maria Puríssima que se alonjava… mas os olhos do pensamento viam a tentação do riso mimoso da teiniaguá; o nariz do meu rosto tomava o faro do incenso que fugia, ardendo e perfumando as santidades… mas o faro do pensamento sorvia a essência das flores do mel fino de que a teiniaguá tanto gostava; a língua da minha boca estava seca, de agonia, dura de terror, amarga de doença… mas a língua do pensamento saboreava os beijos da teiniaguá, doces e macios, frescos e sumarentos como polpa de guabiju colhido ao nascer do sol; o tato das minhas mãos tocava manilhas de ferro, que me prendiam por braços e pernas… mas o tato do pensamento roçava sôfrego pelo corpo da encantada, torneado e rijo, que se encolhia em ânsias, arrepiado como um lombo de jaguar no cio, que se estendia planchado como um corpo de cascavel em fúria…
E tanto como o povo ia entrando na cidade, ia eu chegando à barranca do Uruguai; tanto como as gentes, lá, iam acabando as orações para alcançar a demência divina, ia eu começando o meu fadário, todo dado à teiniaguá, que me enfeitiçou de amor, pelo seu amor de princesa moura, pelo seu amor de mulher, que vale mais que destino de homem !…
Sem peso de dores nos ossos e nas carnes, sem peso de ferros no corpo, sem peso de remorsos na alma passei o rio para o lado do Nascente. A teiniaguá fechou os tesouros da outra banda e juntos fizemos então caminho para o Cerro do Jarau, que ficou sendo o paiol das riquezas de todas as salamancas dos outros lugares.
Para memória do dia tão espantoso lá ficou o sangão rasgado na baixada da cidade de Santo Tomé, desde o tempo antigo das Missões.
VI
Faz duzentos anos que aqui estou; aprendi sabedorias árabes e tenho tornado contentes alguns raros homens que bem sabem que a alma é um peso entre o mandar e o ser mandado…
Nunca mais dormi; nunca mais nem fome, nem sede, nem dor, nem riso…
Passeio no palácio maravilhoso, dentro deste Cerro do Jarau, ando sem parar e sem cansaço; piso com pés vagarosos, piso torrões de ouro em pó, que se desfazem como terra fofa; o areão dos jardins, que calco, enjoado, é todo feito de pedras verdes e amarelas e escarlates, azuis, rosadas, violetas… e quando a encantada passa, todas incendeiam-se num íris de cores rebrilhantes, como se cada uma fosse uma brasa viva faiscando sem a mais leve cinza…; há poços largos que estão atulhados de doblões e de onças e peças de jóias e armaduras, tudo ouro maciço do Peru e do México e das Minas Gerais, tudo cunhado com os troféus dos senhores reis de Portugal e de Gastela e Aragão…
E eu olho para tudo, enfarado de ter tanto e de não poder gozar nada entre os homens, corno quando era como eles e como eles gemia necessidades e cuspia invejas, tendo horas de bom coração por dias de maldade e sempre aborrecimento do que possuía, ambicionando o que não possuía…
O encantamento que me aprisiona consente que eu acompanhe os homens de alma forte e coração sereno que quiserem contratar a sorte nesta salamanca que eu tornei famosa, do Jarau.
Muitos têm vindo… e têm saído piorados, para lá longe irem morrer do medo aqui pegado, ou andarem pelos povoados assustando as gentes, loucos, ou pelos campos fazendo vida com os bichos brutos…
Poucos toparam a parada… ah!… mas esses que toparam, tiveram o que pediram, que a rosa dos tesouros, a moura encantada não desmente o que eu prometo, nem retoma o que dá!
E todos os que chegam deixam um resgate de si próprios para o nosso livramento um dia…
Mas todos os que vieram são altaneiros e vieram arrastados pela ânsia da cobiça ou dos vícios, ou dos ódios: tu foste o único que veio sem pensar e o único que me saudou como filho de Deus…
Foste o primeiro, até agora; quando terceira saudação de cristão bafejar estas alturas, o encantamento cessará, porque eu estou arrependido… e como Pedro Apóstolo que três vezes negou Cristo foi perdoado, eu estou arrependido e serei perdoado.
Está escrito que a salvação há de vir assim; e por bem de mim, quando cessar o meu cessará também o encantamento da teiniaguá: e quando isso se der, a salamanca desaparecerá. e todas as riquezas, todas as pedras finas, todas as peças cunhadas, todos os sortilégios, todos os filtros para amar por força… para matar… para vencer… tudo, tudo, tudo se virará em fumaça que há de sair pelo cabeço roto do cerro, espalhada na rosa-dos-ventos pela rosa dos tesouros…
Tu me saudaste o primeiro, tu! – saudaste-me como cristão.
Pois bem:
alma forte e coração sereno!… Quem isso tem, entra na salamanca, toca o condão mágico e escolhe do quanto quer…
Alma forte e coração sereno! A furna escura está lá: entra! Entra! Lá dentro sopra um vento quente que apaga qualquer torcida de candeia… e tramado nele corre outro vento frio, frio… que corta como serrilha de geada.
Não há ninguém lá dentro… mas bem que se escuta voz de gente, vozes que falam…. falam, mas não se entende o que dizem, porque são línguas atoradas que falam, são os escravos da princesa moura, os espíritos da teiniaguá… Não há ninguém… não se vê ninguém: mas há mãos que batem, como convidando, no ombro do que entra firme, e que empurram, como ainda ameaçando, o que recua com medo…
Alma forte e coração sereno! Se entrares assim, se te portares lá dentro assim, podes então querer e serás servido!
Mas, governa o pensamento e segura a língua: o pensamento dos homens é que os levanta acima do mundo, e a sua língua é que os amesquinha…
Alma forte, coração sereno!… Vai!
Blau, o guasca,
apeou-se maneou o flete e por de seguro ainda pelo cabresto prendeu-o a um galho de cambuí que verga sem quebrar-se; rodou as esporas para o peito do pé; aprumou de bom jeito o facão; santiguou-se, e seguiu…
Calado fez; calado entrou.
O sacristão levantou-se e o seu corpo desfez-se em sombra na sombra da reboleira.
O silêncio que então se desdobrou era como o vôo parado das corujas: metia medo…
VII
Blau Nunes foi andando.
Entrou na boca da toca apenas aí clareada e isso pouco, por causa da enrediça da ramaria que se cruzava nela; pra o fundo era tudo escuro…
Andou mais, num corredor dumas braças; mais ainda; sete corredores nasciam deste.
Blau Nunes foi andando.
Enveredou por um deles; fez voltas e contravoltas, subiu, desceu. Sempre escuro. Sempre silêncio.
Mãos de gente, sem gente que ele visse, batiam-lhe no ombro.
Numa cruzada de carreiros sentiu ruído de ferros que se chocavam, tinir de muitas espadas, seu conhecido.
Por então o escuro ia já num luzir de vaga-lume.
Grupos de sombras com feitio de homens peleavam de morte; nem pragas nem fuzilar d’olhos raivosos, porém furiosos eram os golpes que elas iam talhando umas nas outras, no silencio.
Blau teve um relance de parada, mas atentou logo no dizer do vulto de face branca e tristonha – Alma forte, coração sereno…
E meteu o peito entre o espinheiro das espadas, sentiu o corte delas, o fino das pontas, o redondo dos copos… mas passou, sem nem olhar aos lados, num entono, escutando porém os choros e gemidos dos peleadores.
Mãos mais leves bateram-lhe no ombro, como carinhosas e satisfeitas.
Outro mais ruído nenhum ouvia ele no ar quieto da furna que o rangido dos cabrestilhos das suas esporas.
Blau Nunes foi andando.
Andando numa luz macia, que não dava sombra. Enredada como os caminhos dum capim era a furna, dando corredores sem conta, a todos os rumos; e ao desembocar do em que vinha, justo num cotovelo dele, saltaram-lhe aos quatro lados jaguares e pumas, de goela aberta e bafo quente, patas levantadas mostrando as unhas, a cola mosqueando, numa fúria…
E ele meteu o peito e passou, sentindo a cerda dura das feras roçarem-lhe o corpo; passou sem pressa nem vagar, escutando os urros que pra trás iam ficando e morrendo sem eco…
As mãos, de braços que ele não via, em corpos que não sentia, mas que, certo, o ladeavam, as mãos iam-lhe sempre afagando os ombros, sem bem o empurrar, mas atirando-o para adiante.., adiante…
A luz ia na mesma, cor da de vaga-lume, esverdeada e amarela…
Blau Nunes foi andando.
Agora era um lançante e ao fim dele parou num redondel topetado de ossamentas de criaturas. Esqueletos, de pé encostados uns nos outros, muitos, derreados, como numa preguiça; pelo chão caídas, partes deles, despencadas; caveiras soltas, dentes branqueando, tampos de cabeças, buracos de olhos, pernas e pés em passo de dança, alcatras e costelas meneando-se num vagar compassado, outras em saracoteio…
Aí o seu braço direito quase moveu-se acima, como para fazer o sinal da cruz ;… porém – alma forte, coração sereno! – meteu o peito e passou entre as ossadas, sentindo o bafio que elas soltavam das suas juntas bolorentas.
As mãos, aquelas, sempre brandas, afagavam-lhe outra vez os ombros…
Blau Nunes foi andando.
O chão ia alteando-se, numa trepada forte que ele venceu sem aumentar a respiração; e num desvão, a modo dum forno, teve de passar por uma como porta dele, e ai dentro era um jogo de línguas de fogo, vermelho e forte, como atiçado com lenha de nhanduvai; e repuxos d’água, saídos das paredes, batiam nele e referviam, chiando, fazendo vapor; um ventarão rondava ali dentro, enovelando águas e fogos, que era uma temeridade cortar aquele turbi1hão…
Outra vez ele meteu o peito e passou, sentindo o mormaço das labaredas.
As mãos do ar mais o palmeavam nos ombros, como querendo dizer – muito bem! –
Blau Nunes foi andando.
Já tinha perdido a conta do tempo e do rumo que trazia; sentia no silêncio como que um peso de arrobas; a claridade mortiça porém, já se lhe assentara nos olhos e tanto, que viu adiante, em sua frente e caminho, um corpo enroscado, sarapintado e grosso, batendo no chão uns chocalhos, grandes como ovos de téu-téu.
Era a boicininga, guarda desta passagem, que levantava a cabeça flechosa, lanceando o ar com a língua de cabelos, preta, firmando no vivente a escama dos olhos, luzindo, preto, como botões de veludo…
Das duas presas recurvas, grandes como as aspas dum tourito de sobreano, pingava uma goma escura, que era a peçonha sobrante por um muito jejum de mortandade, lá fora…
A boicininga – a cascavel amaldiçoada – toda se meneava, chocalhando os guizos, como por aviso, fueirando o ar com a língua, como por prova…
Uma serenada de suor minou na testa do paisano… porém ele meteu o peito e passou, vendo, sem olhar, a boicininga altear-se e descair, chata e tremente.., e passou, ouvindo o chocalho da que não perdoa, o sibildo da que não esquece…
E logo então, que era este o quinto passo de valentia que vencera sem temer – de alma forte e coração sereno – logo então as mãos voantes anediaram-lhe o cabelo, palmearam-lhe mais chegadas os ombros.
Blau Nunes foi andando.
Desembocou num campestre, de gramado fofo, que tinha um cheiro doce que ele não conhecia; em toda a volta árvores em floradas e estadeando frutos; passarinhada de penas vivas e cantoria alegre: veadinhos mansos; capororocas e outro muito bicharedo, que recreava os olhos; e listando a meio o campestre, brotado duma roca coberta de samambaias, um olho-d’água, que saía em toalha e logo corria em riachinho, pipocando o quanto-quanto sobre areão solto, palhetado de malacachetas brancas, como uma farinha de prata…
E logo uma ronda de moças – cada qual que mais cativa -uma ronda alegre saiu dentre o arvoredo, a cercá-lo, a seduzi-lo, a ele Blau, gaúcho pobre, que só mulheres de anáguas resvalonas conhecia…
Vestiam-se umas em frouxo trançado de flores, outras de fios de contas, outras na própria cabeleira solta… ; estas chegavam-lhe à boca caramujos estrambóticos, cheios de bebida recendente e fumegando entre vidros frios, como de geada; dançavam outras num requebro marcado como por música… outras lá acenavam-lhe para a lindeza dos seus corpos; atirando no chão esteiras macias, num convite aberto e ardiloso.,.
Porém ele meteu os peitos e passou, com as fontes golpeando, por motivo do ar malicioso que o seu bofe respirava…
Blau Nunes foi andando.
Entrou no arvoredo e foi logo rodeado por uma tropa de anões, cambaios e cabeçudos, cada qual melhor para galhofa, e todos em piruetas e mesuras, fandangueiros e volantins, pulando como aranhões, armando lutas, fazendo caretas impossíveis para rostos de gente…
Porém o paisano meteu o peito neles e passou, sem nem sequer um ar de riso no canto dos olhos…
E com este, que era o último, contou os sete passos das provas.
E logo então, aqui, surdiu-lhe em frente o vulto de face tristonha e branca, que, certo, lhe andara nas pisadas, de companheiro – sem corpo – e sem nunca lhe valer nos apuros do caminho; e tomou-lhe a mão.
E Blau Nunes foi seguindo.
Por detrás de um cortinado como de escamas de peixe-dourado, havia um socavão reluzente. E sentada numa banqueta transparente, fogueando cores como as do arco-íris, estava uma velha, muito velha, carquincha e curvada, e como tremendo de caduca.
E segurava nas mãos uma varinha branca, que ela revirava e tangia, e atava em nós que se desfaziam, laçadas que se deslaçavam e torcidas que se destorciam, ficando sempre linheira.
– Cunhã, disse o vulto, o paisano quer!
– Tu, vieste; tu, chegaste; pede, tu, pois! respondeu a velha.
E moveu e ergueu o corpo magro, dando estalos nas juntas e levantou a varinha para o ar: logo o condão coriscou por sobre ela uma chuva de raios, mais que como num temporal desfeito das nuvens carregadas cairia. E disse:
– Por sete provas que passaste, sete escolhas dar-te-ei… Paisano, escolhe! Para ganhar a parada em qualquer jogo… de naipes, que as mãos ajeitam, de dados, que a sorte revira, de cavalos, que se cotejam, do osso, que se sopesa, da rifa… queres?
– Não! – disse Blau, e todo o seu parecer foi se mudando num semblante como de sonâmbulo, que vê o que os outros não vêem… como os gatos, que acompanham com os olhos cousas que passam no ar e ninguém vê…
– Para tocar a viola e cantar… amarrando nas cordas dela o coração das mulheres que te escutarem…, e que hão de sonhar contigo, e ao teu chamado irão – obedientes, como aves varadas pelo olhar das cobras -, deitar-se entregues ao dispor dos teus beijos, ao apertar dos teus braços, ao resfolegar dos teus desejos… queres?
– Não! – respondeu a boca, por mandado só do ouvido…
– Para conhecer as ervas, as raízes, os sucos das plantas e assim poderes curar os males dos que tu estimares ou desfazer a saúde dos que aborreceres;… e saber simpatias fortes para dar sonhos ou loucura, para tirar a fome, relaxar o sangue, e gretar a pele e espumar os ossos,…. ou para ligar apartados, achar cousas perdidas, descobrir invejas… ; queres?
– Não!
– Para não errar golpe – de tiro, lança ou faca – em teu inimigo, mesmo no escuro ou na distância, parado ou correndo, destro ou prevenido, mais forte que tu ou astucioso… ; queres?
– Não!
– Para seres mandão no teu distrito e que todos te obedeçam sem resmungos;… seres língua com os estrangeiros e que todos te entendam;…: queres?
– Não!
– Para seres ricaço de campo e gado e manadas de todo o pêlo;… queres?
– Não
– Para fazeres pinturas em tela, versos harmoniosos, novelas de sofrimentos, autos de chocarrice, músicas de consolar, lavores no ouro, figuras no mármor,… queres?
– Não!
– Pois que em sete poderes te não fartas, nada te darei, porque do que foi prometido nada quiseste. Vai-te
Blau nem se moveu; e, carpindo dentro em si a própria rudeza, pensou no que queria dizer e não podia e que era assim:
– Teiniaguá encantada! Eu te queria a ti, porque tu és tudo!… És tudo o que eu não sei o que é, porém que atino que existe fora de mim, em volta de mim, superior a mim. Eu te queria a ti, teiniaguá encantada!…
Mas uma escuridão fechada, como nem noite a mais escura dá parelha, caiu sobre o silêncio que se fez, e uma fôrça torceu o paisano.
Blau Nunes arrastou um passo e outro e terceiro; e desandou caminho; e quando ele andara em voltas e contravoltas, em subidas e descidas, tanto em direitura foi bater na boca da furna por onde havia entrado, sem engano.
E viu atado e quieto o seu cavalo; em roda as mesmas restingas, ao longe os mesmos descampados mosqueados das pontas de gado, a um lado o encordoado das coxilhas, a outro, numa aberta entre matos um claro prateado, que era água do arroio.
Memorou o que tinha acabado de ver e de ouvir e de responder; dormindo, não tinha, nem susto lhe tirara o entendimento.
E pensou que tendo tido oferta de muito não lograra nada por querer tudo… e num arranco de raiva cega decidiu outra investida.
Voltou-se para entrar de novo… mas bateu coo peito na parede dura do cerro. Terra maciça, mato cerrado, capins, limos… e nenhuma fresta, nem brecha nem buraco, nem furna, caverna, toca, por onde escorresse um corpinho de guri, quando mais passasse porte de homem!…
Desanimado e penaroso, compôs o cavalo e montou; e ao dar de rédea apareceu-lhe pelo lado de laçar o sacristão, o vulto de face branca e tristonha, que tristemente estendeu-lhe a mão, dizendo:
– Nada quiseste; tiveste a alma forte e o coração sereno, tiveste, mas não soubeste governar o pensamento nem segurar a língua!… Não te direi se bem fizeste ou mal. Mas como és pobre e isso te aflige, aceita este meu presente, que te dou. É uma onça de ouro que está furada pelo condão mágico; ela te dará tantas outras quantas quiseres, mas sempre de uma em uma e nunca mais que uma por vez; guarda-a em lembrança de mim!
E o corpo do sacristão encantado desfez-se em sombra na sombra da reboleira…
Blau Nunes, meteu na guaiaca a onça furada, e deu de rédea.
O sol tinha cambado e o Cerro do Jarau já fazia sombra comprida sobre os bamburrais e restingas que lhe formavam assento.
VIII
Na troteada para o posto em que morava, um ranchote de beira no chão tendo por porta um couro -, Blau rumeou para uma venda grande que sortia aquele vizindário, mesmo a troco de courama, cerda ou algum tambeiro; e como vinha de garganta seca e a cabeça atordoada mandou botar uma bebida.
Bebeu; e puxou da guaiaca a onça e pagou; era tão mínima a despesa e o câmbio que veio, tanto, que pasmou, olhando para de, de tão desacostumado que andava de ver dinheiro tanto, que chamasse seu…
E de dedos engatanhados socou-o todo para dentro da guaiaca, sentindo-lhe o peso e o sonido afogado.
CaIado, montou de novo, retirando-se.
No caminho foi pensando nas todas as cousas que carecia e que iria comprar. Entre aperos e armas e roupas, um lenço grande e umas botas, outro cavalo, umas esporas e embelecos que pretendia, andava tudo por uma mão-cheia de cruzados e a si próprio perguntava se aquela onça encantada, dada para indez, teria mesmo o condão de entropilhar outras muitas, tantas como as que precisava, e mais ainda, outras e outras que o seu desejo fosse despencando?!…
Chegou ao posto, e como homem avisado, não falou do que fizera durante o dia, apenas do boi barroso, que campeou e não achou; e no seguinte, logo cedo saiu a empeçar a prova do prometido.
Naquele mesmo negociante ajustou umas roupas tafulonas; e mais uma adaga de cabo e bainha com anéis de prata; e mais as esporas e um rebenque de argolão.
Toda a compra passava de três onças.
E Blau, as fontes latejando, a boca cerrada, num aperto que lhe fazia doer o carrinho, piscando os olhos, a respiração atropelada, todo ele numa desconfiança, Blau, por debaixo do seu balandrau remendado começou a gargantear a guaiaca… e caiu-lhe na mão uma onça… e outra… e outra!… As quatro, que por agora eram tão de jeito!…
Mas não caíram duas e duas ou três e uma, ou as quatro, juntas, porém sim de uma a uma, as quatro, de cada vez só uma…
Voltou ao rancho com a maleta atochada, mas, como homem avisado, não falou do acontecido,
No outro dia seguiu a outro rumo, para outro negociante mais forte e de prateleiras mais variadas. Já levava alinhavado o sortimento que ia fazer, e muito em ordem foi encomendando o aparte das cousas, tendo cuidado em não querer nada de cortar, só peças inteiras, que era para, no caso de falhar a onça, recuar da compra, fazendo um feio, é verdade, mas não ‘sendo obrigado a pagar estrago algum. Notou a conta, que andava por quinze onças, uns cruzados pra menos.
E outra vez, por debaixo do seu balandrau remendado, começou a gargantear a guaiaca, e logo lhe foi caindo na mão uma onça… e segunda… outra… e quarta, mais outra, e sexta… e assim de uma em uma, as quinze necessárias!
O negociante ia recebendo e alinhando sobre o balcão as moedas conforme vinham elas minando da mão do pagador, e quando estavam todas disse, entre risonho e desconfiado:
– Cuê-pucha!… cada onça das suas parece que é um pinhão, que é preciso descascar à unha !…
No terceiro dia passou na estrada uma cavalhada; Blau fez parar a tropa e ajustou uma quadrilha, apartada por ele, à sua vontade, e como facilitou o preço, fechou-se o trato.
Ele e o capataz, sós no meio da cavalhada, iam fazendo mover-se os animais; no apinhado de todas, Blau marcava a cabeça que mais lhe agradava pelo focinho, pelos olhos, pelas orelhas; com um sovéu fino, de armada pequena, reboleava por dentro e ia, certo, laçar o bagual escolhido; se ainda, sem ovas e bons cascos, aprazia-lhe, tirava-o então, como seu, para o potreiro do piquete.
Olho de campeiro, não errou vez alguma a escolha, e trinta cavalos, a flor, foram apartados, custando quarenta e cinco onças.
E enquanto a tropa verdejava e bebia, os tratistas foram para a sombra duma figueira que havia na beira da estrada.
Blau por debaixo do seu balandrau remendado, ainda desconfiando, começou a gargantear a guaiaca… e foi logo aparando, onça por onça, uma, três, seis, dez, dezoito, vinte e cinco, quarenta, quarenta e cinco!…
O vendedor, estranhando aquela novidade e demora, não se conteve e disse:
– Amigo! As suas onças parecem talas de jerivá, que só cai uma de cada vez!…
Depois desses três dias de prova Blau acreditou na onça encantada.
Arrendou um campo e comprou o gado, pra mais de dez mil cabeças, aquerenciado.
O negócio era muito acima de três mil onças, a pagar no recebimento.
Ai o coitado perdeu quase o dia inteiro a gargantear a guaiaca e a aparar onça por onça, uma atrás da outra, sempre uma a uma!…
Cansou-lhe o braço; cansou-lhe o corpo; não falhava golpe, mas tinha de ser como martelada, que não se dá duas ao mesmo tempo…
O vendedor, à espera que Blau completasse a soma, saiu, mateou, sesteou; e quando, sobre a tarde, voltou à ramada, lá estava ele ainda aparando onça trás onça!…
Ao escurecer estava completo o ajuste.
Começou a correr a fama da sua fortuna. E todos espantavam-se, por ele, gaúcho despilchado de ontem, pobre, que só tinha de seu as chilcas, afrontar os abonados, assim do pé para a mão… E também era falado o seu esquisito modo de pagar – que pagava sempre, valha a verdade – só de onça por onça, uma depois de outra e nunca, nunca ao menos duas, acolheradas!…
Aparecia gente a propor-lhe negócio, ainda de pouco preço, só para ver como aquilo era; e para todos era o mesmo mistério.
Mistério para o próprio Blau… muito rico… muito rico… mas de onça em onça, como tala de jerivá, que só cai uma de cada vez… como pinhão da serra, que só se descasca de um a um!…
Mistério para Blau, muito rico… muito rico… Mas todo o dinheiro que ele recebia, que entrava das vendas feitas, todo o dinheiro que lhe pagavam a ele, todo desaparecia, guardado na arca de ferro, desaparecia como desfeito em ar…
Muito rico… muito rico das onças que precisasse, e nunca faltaram para gastar no que lhe parecesse: bastava-lhe gargantear a guaiaca, e elas começavam a pingar;… mas nenhuma das que recebia lhe ficava, todas evaporavam-se como água em tijolo quente…
IX
Então começou a correr um boquejo de ouvido para ouvido… e era que ele tinha parte com o diabo, e que o dinheiro dele era maldito porque todos com quem tratava e recebiam das suas onças, todos entravam, ao depois, a fazer maus negócios e todos perdiam em prejuízos exatamente a quantia igual à de suas mãos recebida.
Ele comprava e pagava a vista, é certo; o vendedor contava e recebia, é certo… mas o negócio empreendido com esse valor era de prejuízo garantido.
Ele vendia e recebia, é certo; mas o valor recebido que ele guardava e rondava, sumia-se como um vento, e não era roubado nem perdido; era sumido, por si mesmo…
O boquejar foi alastrando, e já diziam que aquilo, por certo, era mandinga arrumada na salamanca do Jarau, onde ele foi visto mais de uma feita.., e que lá é que se jogava a alma contra a sorte…
E os mais vivarachos já faziam suas madrugadas sobre o Jarau; outros, mais sorros, pra lá tocavam-se ao escurecer, outros, atrevidaços, iam à meia-noite, outros ainda ao primeiro cantar dos galos…
E como nesse carreiro de precatados cada um fazia por ir de mais escondido, sucedeu que como sombras se pechavam entre as sombras das reboleiras, sem atinar coa salamanca, ou sem topete para, na escuridão, quebrar aquele silêncio, chamando o santão, num grito alto…
No entanto Blau começou a ser tratado de longe, como um chimarrão rabioso…
Já não tinha com quem pautear; churrasqueava solito, e solito mateava, rodeado dos cachorros, que uivavam, às vezes um, às vezes todos…
A peonada foi saindo e conchavando-se noutras partes; os negociantes nada compravam-lhe e negaceavam para vender-lhe; os andantes cortavam campo para não pararem nos seus galpões…
Blau deu em cismar, e cisma foi que resolveu acabar com aquele cerco de isolamento, que o ralava e esmorecia…
Montou a cavalo e foi ao cerro. Na trepada sentiu aos dois lados barulho nos bamburrais e nas restingas, mas pensou que seria alguma ponta de gado xucro que disparava, e não fez caso; foi trepando. Mas não era, não, gado xucro espantado, nem guaraxaim corrido, nem tatu vadio; era gente, gente que se escondia uns dos outros e dele…
Assim chegou à reboleira do mato, tão sua conhecida e recordada, e como chegou, deu de cara com o vulto de face branca e tristonha, o sacristão encantado, o santão.
Ainda desta vez, como era ele que chegava, a ele competia louvar; saudou, como da outra:
– Laus’ Sus-Cris’ !…
– Para sempre, amém! – respondeu o vulto.
Então Blau, de a cavalo, atirou-lhe aos pés a onça de ouro, dizendo:
– Devolvo! Prefiro a minha pobreza dantes à riqueza desta onça, que não se acaba, é verdade, mas que parece amaldiçoada, porque nunca tem parelha e separa o dono dos outros donos de onças!… Adeus! Fica-te com Deus, sacristão!
– Seja Deus louvado! – disse o vulto e caiu de joelhos, de mãos postas, como numa reza. – Pela terceira vez falaste no Nome Santo, tu, paisano, e com ele quebraste o encantamento!… Graças! Graças! Graças!…
E neste mesmo instante, que era o da terceira vez que Blau saudava no Nome Santo, neste mesmo momento ouviu-se um imenso estouro, que retumbou naquelas vinte léguas em redor do Cerro do Jarau tremeu de alto a baixo, até às suas raízes, nas profundas da terra, e 1ogo, em cima, no chapéu do espigão, apareceu, cresceu, subiu, aprumou-se, brilhou, apagou-se, uma língua de fogo, alta como um pinheiro, apagou-se, e começou a sair fumaça negra, em rolos grandes, que o vento ia tocando para longe, por cima do encordoado das coxilhas, sem rumo feito, porque a fumaceira inchava e desparramava-se no ar, dando voltas e contravoltas, torcendo-se, enroscando-se, em altos e baixos, num desgoverno, como uma tropa de gado alçado, que espirra e se desmancha como água passada em regador…
Era a queima dos tesouros da salamanca, como dissera o sacristão.
Sobre as caídas do Cerro levantou-se um vozeio e tropel; eram os maulas que andavam rastreando a furna encantada e que agora fugiam, desguaritados, como filhotes de perdiz…
X
Para os olhos de Blau o cerro ficou como de vidro transparente, e então viu ele o que lá dentro se passava: os brigões, os jaguares, os esqueletos, os anões, as lindas moças, a boicininga, tudo, torcido e enovelado, amontoado, revolvido, corcoveava dentro das labaredas vermelhas que subiam e apagavam-se dentro dos corredores, cada vez mais carregados de fumaça… e urros, gritos, tinidos, sibildos, gemidos, tudo se confundia no tronar da voz maior que estrondeava no cabeço empenachado do cerro.
Ainda uma vez a velha carquincha transformou-se na teiniaguá… e a teiniaguá na princesa moura… a moura numa tapuia formosa;… e logo o vulto de face branca e tristonha tornou a figura do sacristão de S. Tomé, o sacristão, por sua vez, num guasca desempenado…
E assim, quebrado o encantamento que suspendia fora da vida das outras aquelas criaturas vindas do tempo antigo e de lugar distante, aquele par, juntado e tangido pelo Destino, que é o senhor de todos nós, aquele par novo, de mãos dadas como namorados, deu costas ao seu desterro, e foi descendo a pendente do coxilhão, até a várzea limpa, plana e verde, serena e amornada de sol claro, toda bordada de boninas amarelas, de bibis roxas, de malmequeres ‘brancos, como uma cancha convidante para uma cruzada de ventura, em viagem de alegria, a caminho do repouso!…
Blau Nunes também não quis mais ver; traçou sobre o seu peito uma cruz larga, de defesa, na testa do seu cavalo outra, e deu de rédea e d’espacito foi baixando a encosta do cerro, com o coração aliviado e retinindo como se dentro dele cantasse o passarinho verde…
E agora, estava certo de que era pobre como dantes, porém que comeria em paz o seu churrasco…; e em paz o seu chimarrão, em paz a sua sesta, em paz a sua vida!…
Assim acabou a salamanca do Cerro do Jarau, que aí durou duzentos anos, que tantos se contam desde o tempo das Sete Missões, em que estas cousas principiaram.
Anhangá-pitã, também, desde aí, não foi mais visto. Dizem que, desgostoso, anda escondido, por não haver tomado bem tendência que a teiniaguá era mulher…
O NEGRINHO DO PASTOREIO
NAQUELE TEMPO os campos ainda eram abertos, não havia entre eles nem divisas nem cercas; somente nas volteadas se apanhava a gadaria xucra e os veados e as avestruzes corriam sem empecilhos…
Era uma vez um estancieiro, que tinha uma ponta de surrões cheios de onças e meias-doblas e mais muita prataria; porém era muito cauíla e muito mau, muito.
Não dava pousada a ninguém, não emprestava um cavalo a um andante; no inverno o fogo da sua casa não fazia brasas; as geadas e o minuano podiam entanguir gente, que a sua porta não se abria; no verão a sombra dos seus umbus só abrigava os cachorros; e ninguém de fora bebia água das suas cacimbas.
Mas também quando tinha serviço na estância, ninguém vinha de vontade dar-lhe um ajutório; e a campeirada folheira não gostava de conchavar-se com ele, porque o homem só dava para comer um churrasco de tourito magro, farinha grossa e erva-caúna e nem um naco de fumo… e tudo, debaixo de tanta somiticaria e choradeira, que parecia que era o seu próprio couro que ele estava lonqueando…
Só para três viventes ele olhava nos olhos: era para o filho, menino cargoso como uma mosca, para um baio cabos-negros, que era o seu parelheiro de confiança, e para um escravo, pequeno ainda, muito bonitinho e preto como carvão e a quem todos chamavam somente o – Negrinho.
A este não deram padrinhos nem nome; por isso o Negrinho se dizia afilhado da Virgem, Senhora Nossa, que é a madrinha de quem não a tem.
Todas as madrugadas o Negrinho galopeava o parelheiro baio; depois conduzia os avios do chimarrão e à tarde sofria os maus tratos do menino, que o iudiava e se ria.
***
Um dia depois de muitas negaças, o estancieiro atou carreira com um seu vizinho. Este queria que a parada fosse para os pobres; o outro que não, que não! que a parada devia ser do dono do cavalo que ganhasse. E trataram: o tiro era trinta quadras, a parada, mil onças de ouro.
No dia aprazado, na cancha da carreira havia gente como em festa de santo grande.
Entre os dois parelheiros, a gauchada não sabia se decidir, tão perfeito era e bem lançado cada um dos animais. Do baio era fama que quando corria, corria tanto, que o vento assobiava-lhe nas crinas; tanto, que só se ouvia o barulho, mas não lhe viam as patas baterem no chão… E do mouro era voz que quanto mais cancha, mais agüente e que desde a largada ele ia ser como um laço que se arrebenta…
As parcerias abriram as guaiacas, e aí no mais já se apostavam aperos contra rebanhos e redomões contra lenços.
-Pelo baio! Luz e doble!…
-Pelo mouro! Doble e luz!…
Os corredores fizeram as suas partidas à vontade e depois as obrigadas; e quando foi na última, fizeram ambos a sua senha e se convidaram. E amagando o corpo, de rebenque no ar, largaram, os parelheiros meneando cascos, que parecia uma tormenta…
– Empate! Empate! – gritavam os aficionados ao longo da cancha por onde passava a parelha veloz, compassada como numa colhera.
– Valha-me a Virgem madrinha, Nossa Senhora! – gemia o Negrinho. – Se o sete-léguas perde, o meu senhor me mata! hip! hip! hip!…
E baixava o rebenque, cobrindo a marca do baio.
– Se o corta-vento ganhar é só para os pobres!… retrucava o outro corredor. Hip! hip!
E cerrava as esporas no mouro.
Mas os fletes corriam, compassados como numa colhera, Quando foi na última quadra, o mouro vinha arrematado e o baio vinha aos tirões… mas sempre juntos, sempre emparelhados.
E a duas braças da raia, quase em cima do laço, o baio assentou de supetão, pôs-se em pé e fez uma caravolta, de modo que deu ao mouro tempo mais que preciso para passar, ganhando de luz aberta! E o Negrinho, de em pêlo, agarrou-se como um ginetaço.
– Foi mau jogo! – gritava o estancieiro.
– Mau jogo! – secundavam os outros da sua parceria.
A gauchada estava dividida no julgamento da carreira; mais de um torena coçou o punho da adaga, mais de um desapresilhou a pistola, mais de um virou as esporas para o peito do pé… Mas o juiz, que era um velho do tempo da guerra de Sepé-Tíaraju, era um juiz macanudo, que já tinha visto muito mundo. Abanando a cabeça branca sentenciou, para todos ouvirem:
– Foi na lei! A carreira é de parada morta; perdeu o cavalo baio, ganhou o cavalo mouro, Quem perdeu, que pague. Eu perdi cem gateadas; quem as ganhou venha buscá-las. Foi na lei!
Não havia o que alegar. Despeitado e furioso, o estancieiro pagou a parada, à vista de todos, atirando as mil onças de ouro sobre o poncho do seu contrário, estendido no chão.
E foi um alegrão por aqueles pagos, porque logo o ganhador mandou distribuir tambeiros e leiteiras, côvados de baeta e haguais e deu o resto, de mota, ao pobrerio. Depois as carreiras seguiram com os changueiritos que havia.
***
O estancieiro retirou-se para a sua casa e veio pensando, pensando calado, em todo o caminho. A cara dele vinha lisa, mas o coração vinha corcoveando como touro de banhado laçado a meia espalda… O trompaço das mil onças tinha-lhe arrebentado a alma.
E conforme apeou-se, da mesma vereda mandou amarrar o Negrinho pelos pulsos a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho.
Na madrugada saiu com ele e quando chegou no alto da coxilha falou assim:
– Trinta quadras tinha a cancha da carreira que tu perdeste: trinta dias ficarás aqui pastoreando a minha tropilha de trinta tordilhos negros… O baio fica de piquete na soga e tu ficarás de estaca!
O Negrinho começou a chorar, enquanto os cavalos iam pastando.
Veio o sol, veio o vento, veio a chuva, veio a noite. O Negrinho, varado de fome e já sem força nas mãos, enleou a soga num pulso e deitou-se encostado a um cupim.
Vieram então as corujas e fizeram roda, voando, paradas no ar, e todas olhavam-no com os olhos reluzentes, amarelos na escuridão. E uma piou e todas piaram, como rindo-se dele, paradas no ar, sem barulho nas asas.
O Negrinho tremia, de medo… porém de repente pensou na sua madrinha Nossa Senhora e sossegou e dormiu.
E dormiu. Era já tarde da noite, iam passando as estrelas; o Cruzeiro apareceu, subiu e passou; passaram as Três-Marias: a estrela-d’alva subiu… Então vieram os guaraxains ladrões e farejaram o Negrinho e cortaram a guasca da soga. O baio sentindo-se solto rufou a galope, e toda a tropilha com ele, escaramuçando no escuro e desguaritando-se nas canhadas.
O tropel acordou o Negrinho; os guaraxains fugiram, dando berros de escárnio,
Os galos estavam cantando, mas nem o céu nem as barras do dia se enxergava: era a cerração que tapava tudo.
E assim o Negrinho perdeu o pastoreio. E chorou.
***
O menino maleva foi lá e veio dizer ao pai que os cavalos não estavam. O estancieiro mandou outra vez amarrar o Negrinho pelos pulsos a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho.
E quando era já noite fechada ordenou-lhe que fosse campear o perdido. Rengueando, chorando e gemendo, o Negrinho pensou na sua madrinha Nossa Senhora e foi ao oratório da casa, tomou o coto de vela acesa em frente da imagem e saiu para o campo.
Por coxilhas e canhadas, na beira dos lagoões, nos paradeiros e nas restingas, por onde o Negrinho ia passando, a vela benta ia pingando cera no chão; e de cada pingo nascia uma nova luz, e já eram tantas que clareavam tudo. O gado ficou deitado, os touros não escarvaram a terra e as manadas xucras não dispararam… Quando os galos estavam cantando, como na véspera, os cavalos relincharam todos juntos. O Negrinho montou no baio e tocou por diante a tropilha, até a coxilha que o seu senhor lhe marcara.
E assim o Negrinho achou o pastoreio. E se riu…
Gemendo, gemendo, o Negrinho deitou-se encostado ao cupim e no mesmo instante apagaram-se as luzes todas; e sonhando com a Virgem, sua madrinha, o Negrinho dormiu. E não apareceram nem as corujas agoureiras nem os guaraxains ladrões; porém pior do que os bichos maus, ao clarear o dia veio o menino, filho do estancieiro e enxotou os cavalos, que se dispersaram, disparando campo fora, retouçando e desguaritando-se nas canhadas.
O tropel acordou o Negrinho e o menino maleva foi dizer ao seu pai que os cavalos não estavam lá…
E assim o Negrinho perdeu o pastoreio. E chorou…
***
O estancieiro mandou outra vez amarrar o Negrinho pelos pulsos, a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho… dar-lhe até ele não mais chorar nem bulir, com as carnes recortadas, o sangue vivo escorrendo do corpo… O Negrinho chamou pela Virgem sua madrinha e Senhora Nossa, deu uni suspiro triste, que chorou no ar como uma música, e pareceu que morreu…
E como já era noite e para não gastar a enxada em fazer uma cova, o estancieiro mandou atirar o corpo do Negrinho na panela de um formigueiro, que era para as formigas devorarem-lhe a carne e o sangue e os ossos… E assanhou bem as formigas, e quando elas, raivosas, cobriam todo o corpo do Negrinho e começaram a trincá-la é que então ele se foi embora, sem olhar para trás.
Nessa noite o estancieiro sonhou que ele era ele mesmo, mil vezes e que tinha mil filhos e mil negrinhos, mil cavalos baios e mil vezes mil onças de ouro… e que tudo isto cabia folgado dentro de um formigueiro pequeno…
Caiu a serenada silenciosa e molhou os pastos, as asas dos pássaros e a casca das frutas.
Passou a noite de Deus e veio a manhã e o sol encoberto. E três dias houve cerração forte, e três noites o estancieiro teve o mesmo sonho.
***
A peonada bateu o campo, porém ninguém achou a tropilha e nem rastro.
Então o senhor foi ao formigueiro, para ver o que restava do corpo do escravo.
Qual não foi o seu grande espanto, quando chegado perto, viu na boca do formigueiro o Negrinho de pé, com a pele lisa, perfeita, sacudindo de si as formigas que o cobriam ainda!… O Negrinho, de pé, e ali ao lado, o cavalo baio e ali junto a tropilha dos trinta tordilhos… e fazendo-lhe frente, de guarda ao mesquinho, o estancieiro viu a madrinha dos que não a têm, viu a Virgem, Nossa Senhora, tão serena, pousada na terra, mas mostrando que estava no céu… Quando tal viu, o senhor caiu de joelhos diante do escravo.
E o Negrinho, sarado e risonho, pulando de em pêlo e sem rédeas; no baio, chupou o beiço e tocou a tropilha a galope.
E assim o Negrinho pela última vez achou o pastoreio. E não. chorou, e nem se riu.
***
Correu no vizindário a nova do fadário e da triste morte do Negrinho, devorado na panela do formigueiro.
Porém logo, de. perto e de longe, de todos os rumos do vento, começaram a vir notícias de um caso que parecia um milagre novo…
E era, que os posteiros e os andantes, os que dormiam sob as palhas dos ranchos e os que dormiam na cama das macegas, os chasques que cortavam por atalhos e os tropeiros que vinham pelas estradas, mascates e carreteiros, todos davam notícia – da mesma hora – de ter visto passar, como levada em pastoreio, uma tropilha de tordilhos, tocada por um Negrinho, gineteando de em pêlo, em um cavalo baio!…
Então, muitos acenderam velas e rezaram o Pai-nosso pela alma do judiado. Daí por diante, quando qualquer cristão perdia uma cousa, o que fosse, pela noite velha o Negrinho campeava e achava, mas só entregava a quem acendesse uma vela, cuja luz ele levava para pagar a do altar da sua madrinha, a Virgem, Nossa Senhora, que o remiu e salvou e deu-lhe uma tropilha, que ele conduz e pastoreia, sem ninguém ver.
***
Todos os anos, durante três dias, o Negrinho, desaparece: está metido em algum formigueiro grande, fazendo visita às formigas, suas amigas; a sua tropilha esparrama-se, e um aqui, outro por. lá, os seus cavalos retouçam nas manadas das estâncias. Mas ao nascer do sol do terceiro dia, o baio relincha. perto do seu ginete; o Negrinho monta-o e vai fazer a sua recolhida; é quando nas estâncias acontece a disparada das cavalhadas e a gente olha, olha, e não vê ninguém, nem na ponta, nem na culatra.
***
Desde então e ainda hoje, conduzindo o seu pastoreio, o Negrinho, sarado e risonho, cruza os campos, corta os macegais, bandeia as restingas, desponta os banhados, vara os arroios, sobe as coxilhas e desce às canhadas.
O Negrinho anda sempre à procura dos objetos perdidos, pondo-os de jeito a serem achados pelos seus donos, quando estes acendem um coto de vela, cuja luz ele leva para o altar da Virgem Senhora Nossa, madrinha dos que não a têm.
Quem perder suas prendas no campo, guarde esperança: junto de algum moirão ou sob os ramos das árvores, acenda uma vela para o Negrinho do pastoreio e vá lhe dizendo -Foi por aí que eu perdi… Foi por aí que eu perdi… Foi por ai que eu perdi!…
Se ele não achar… ninguém mais.
FIM
Redes Sociais