Fernando Pessoa – Poeta
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Poeta dos mais estimados no Brasil, Fernando Pessoa publicou em vida apenas dois livros, mas deixou uma obra valiosa em que expressa, como poucos, a angústia e as contradições do homem moderno. Afora o mérito inquestionável do escritor, atrai atenção também seu curioso desdobramento em heterônimos, dos quais os mais conhecidos são Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis, poetas, e Bernardo Soares, prosador.
Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu em Lisboa em 13 de junho de 1888. Aos cinco anos perdeu o pai, que era crítico musical. Em vista do segundo casamento da mãe, foi levado em 1896 para Durban, África do Sul, onde fez os cursos correspondentes ao primeiro e segundo graus. Em 1901 escreveu os primeiros poemas, em inglês, e três anos depois já lera os grandes autores de língua inglesa, como William Shakespeare, John Milton, Keats, Shelley, Tennyson e Edgar Allan Poe.
Em 1905 voltou sozinho para Lisboa e iniciou o curso superior de letras, que deixou no ano seguinte. A fim de dispor de tempo para ler e escrever, recusou vários bons empregos e em 1908 passou a trabalhar como tradutor autônomo em escritórios comerciais. Desenvolveu então enorme atividade crítica e criativa, publicou estudos sobre a literatura portuguesa em A Águia (1912) e poemas em A Renascença (1914).
Criou, nessa época, seus heterônimos principais, três personagens distintos, que nada tinham de simples pseudônimos: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis.
Em 1915 apareceram os dois números da revista Orfeu (o segundo foi dirigido por Pessoa e Mário de Sá-Carneiro), com a “Ode triunfal”, a “Ode marítima” e outros textos que já revelavam o inconfundível talento do poeta. Ao viver a paixão, irrealizada, por Ofélia Queirós, Fernando Pessoa lhe explicou, em carta, que sua vida girava em torno da literatura, sendo tudo o mais secundário. Em 1929 organizou com Antônio Boto uma antologia dos poetas portugueses modernos. Em sua fase de maior atividade, lançou diversas teorias estéticas, como o sensacionismo, o paulismo e o interseccionismo.
Vivia, então, em quartos alugados, conflituoso, sujeito a crises de depressão e alcoolismo. Com Mensagem (1934), único livro em português que publicou em vida, concorreu ao Prêmio Antero de Quental, do Secretariado de Propaganda Nacional. Por ser a obra muito pequena, segundo a justificativa alegada na ocasião, ganhou o segundo lugar. O livro é um conjunto de poemas sobre os mitos portugueses em que, a par de alta emotividade, se manifesta profunda reflexão.
Pessoas e estilos – Pessoa não apenas dominou como atualizou e desenvolveu todas as técnicas e vertentes da expressão poética disponíveis em Portugal no começo do século XX. De um lado, como alguém capaz de se assenhorear, em termos práticos, desses meios que uma sociedade culturalmente rica e tradicionalmente literária tinha acumulado; de outro, por sua formação inglesa de linhagem racionalista (e de muitos pontos de contato com o americano Poe), como alguém igualmente capaz de sacudir e galvanizar aquela realidade cultural e seu legado, em que a poesia se cristalizara, se transformara em ornamento social e de diletantismo estéril em torno das saudades não resolvidas, da exaltação patriótica ou pitoresca.
Observa-se na obra de Fernando Pessoa uma nova dinâmica do trabalho literário, mediante uma concepção e utilização crítica da poesia. Pessoa é acima de tudo um demolidor, um desmistificador (mesmo, se necessário, quando se faz passar pelo oposto, por quem mistifica) e, psicologicamente, como disse Jorge de Sena, um “indisciplinador de almas”. Racionalista implacável, é também um mágico, mas um mágico de humor ácido e cruel que tirasse brilhantemente da cartola o coelho mais belo e em seguida o dissecasse severamente diante do público perplexo.
Embora se declarasse influenciado pelo saudosismo e pelos futuristas, por Camilo Pessanha, Cesário Verde e muitos outros, estas e outras fontes são integralmente reprocessadas por sua consciência, por seu poderoso arsenal de recursos estilísticos e pelas metas que muito ambiciosamente perseguiu. Por uma espécie de extremo niilismo existencial (expresso em versos como “Não: não quero nada”; “Nada me prende a nada”; “Não sou nada”; “Há metafísica bastante em não pensar em nada”), Pessoa só acredita no que não existe (“O mito é o nada que é tudo”), faz-se ocultista, faz horóscopos e joga com o irreal contra uma realidade em que não crê, ou considera penosa. É também o sentido do fingimento que atribui ao poeta.
Personalidade dissociável, mas que ao mesmo tempo se integra no imaginário e na arte, recorreu desde cedo ao estratagema dos heterônimos. Ainda nos tempos de colégio criou pelo menos três. Um deles, Alexander Search, é excelente poeta em inglês. De alguns heterônimos elaborou com minúcia os respectivos dados biográficos, idéias e convicções. Dentre uma dezena de pessoas além do próprio (ou ortônimo), três ficaram célebres como poetas e um, o Bernardo Soares do Livro do desassossego, escreveu prosa dispersa e ascética. Os quatro grandes poetas são, portanto, Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.
Obra poética – Exceto por Mensagem e os poemas em inglês, a obra de Pessoa só foi editada em livro após sua morte, quando também se tornou muito conhecida. Além de Mensagem, as obras em que Fernando Pessoa aparece ele próprio como autor são os poemas reunidos no chamado Cancioneiro, os Poemas dramáticos (1952), as poesias “À memória do presidente-rei Sidônio Pais” (1940) e “Quinto Império”, as “Quadras ao gosto popular”, os poemas ingleses e franceses, os que foram coligidos posteriormente e as traduções, entre as quais “O corvo” e mais dois poemas de Poe.
Muitos dos poemas em inglês de Pessoa receberam grande atenção de pesquisadores, sobretudo por explorarem uma tendência que só em Álvaro de Campos se mostra, e sem continuidade: o erotismo hedonista e arrebatado, característico sobretudo de Epithalamium e English Poems III (1921).
Em Mensagem, de nacionalismo místico e simbólico, a essencialidade semântica e as imagens vivamente definidoras fazem do texto um épico de miniaturas, flagrantes surpreendidos na história. Muitos de seus versos já se vulgarizaram, como “Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena”.
No Cancioneiro, há desde poemas sensacionalistas como “Hora absurda” e sonetos ocultistas de desconcertante originalidade até pequenos registros líricos de primorosa sutileza psicológica: “O que és não vem à flor / Das frases e dos dias.”
Nas Poesias (1944) de Álvaro de Campos há muitas faces e perspectivas. Só uma delas, a do cantor das técnicas industriais modernas e da vida urbana, tem a ver com Walt Whitman, a quem Campos presta homenagem num poema e que é poeta de vôos modestos se comparado com Campos. Além do exaltado libertário das odes, que publicou na revista Portugal Futurista (1917) o “Ultimatum”, agressivo manifesto literário, Campos se apresenta também como o avesso, o niilista radical e desesperançado que tritura todas as crenças, ilusões, propósitos e justificativas de sua vida e da vida humana em geral em “Lisbon Revisited” (1 e 2), “Tabacaria”, “Apostila”, “Adiamento”, “Aniversário”. Nesses poemas, como disse Adolfo Casais Monteiro, se revela a “própria encarnação da consciência infeliz do homem moderno”.
Nos Poemas (1946) de Alberto Caeiro, em versos amplos e de um tom de parábola, tudo se tece em torno da natureza contemplada. Aqui, ao contrário do que ocorre em Mensagem, o mito é reduzido a sua realidade mais contingente, como a pomba teológica que se empoleira nas cadeiras “e suja-as”.
Bem diferente é o corte estilístico das Odes (1946) de Ricardo Reis, poeta clássico e pagão, horaciano, de métrica rigorosa e enunciados perfeitos: “Sê todo em cada coisa.”
Esteta de um estoicismo profundo, escreve um português de beleza escultórica e intenção didática: “Ninguém te dá quem és.”
Vitimado por uma crise hepática, Fernando Pessoa morreu em Lisboa em 30 de novembro de 1935. A partir de 1942, por iniciativas de Luís de Montalvor e de João Gaspar Simões, passaram a ser publicadas suas obras completas, inclusive em prosa, principalmente de crítica e filosofia, em que sobressaem Páginas de doutrina estética (1946), Páginas íntimas e de auto-interpretação (1966) e Textos filosóficos (1968). Estas e outras até então conhecidas foram organizadas e anotadas por Cleonice Berardinelli para o volume Obras em prosa (1974), publicado pela Editora José Aguilar, do Rio de Janeiro RJ, que se somou à Obra poética (1969), organizada e anotada por Maria Aliete Galhoz para a mesma editora (1969). Há traduções da obra de Fernando Pessoa e seus heterônimos em espanhol, francês, inglês, alemão, italiano e chinês, entre outras línguas.
Fernando Pessoa – História
Nascimento: 13 de junho de 1888, Distrito de Lisboa, Portugal.
Falecimento: 30 de novembro de 1935, Lisboa, Portugal.
1888
Fernando António Nogueira Pessoa nasceu a 13 de Junho, às 3 horas e 20 minutos da tarde, no quarto andar esquerdo do n.º 4 do Largo de São Carlos em Lisboa, em frente da ópera de Lisboa (Teatro de São Carlos).
Foram seus pais Maria Magdalena Pinheiro Nogueira, natural da ilha Terceira, nos Açores, de vinte e seis anos, e Joaquim de Seabra Pessôa, natural de Lisboa, de trinta e oito anos.
Fernando Pessoa – Ainda bebê com mãe Maria Magdalena
Maria Magdalena Pinheiro Nogueira (1962-1925), era filha do conselheiro Luís António Nogueira, açoriano, conhecido jurisconsulto, que foi diretor-geral do Ministério do Reino e conviveu com várias figuras célebres da época, como Manuel de Arriaga ou o poeta Tomás Ribeiro e de Madalena Xavier Pinheiro, também açoriana.
Maria Magdalena, teve uma educação esmeradíssima, falando francês, inglês e alemão, gostava muito de ler e até de fazer versos. Aprendeu o inglês com o preceptor dos infantes D. Carlos e D. Afonso, o que é significativo do nível social da família.
Maria Magdalena – mãe de Fernando Pessoa
oaquim de Seabra Pessoa (1850-1893), era filho do general Joaquim António de Araújo Pessôa, que se ilustrou nas Guerras Liberais, tendo sido distinguido, entre outras condecorações, com a Torre e Espada e de Dionísia Perestrelo de Seabra.
Funcionário do Ministério da Justiça, tinha alguam vocação literária e artística, sendo em especial um apaixonado melómano. Era crítico musical do jornal «Diário de Notícias», tendo publicado um trabalho sobre o Navio Fantasma, de Wagner.
Com eles viviam a avó paterna, Dionísia, já doente mental, e duas criadas velhas, Joana e Emília.
Foi baptizado a 21 de Julho na Igreja dos Mártires, no Chiado, cujo sino o poeta irá evocar no poema «ó sino da minha aldeia». Foram seus padrinhos a tia Anica, irmã da mãe, e o general Chaby.
Nascido no dia de Santo António, foi baptizado com os dois nomes do santo lisboeta: o de baptismo, Fernando (no mundo, o nosso franciscano chamou-se Fernando de Bulhões), e o de eleição dentro da Ordem, António.
Esta genealogia não lhe foi indiferente. Ao lado de uma dimensão modernista, futurista e inovadora, o poeta assumirá conscientemente a sua ligação às raízes. Note-se que Fernando Pessoa virá a pintar ele próprio o brasão da família Pessoa, reproduzindo elementos constantes do Arquivo Heráldico Genealógico, brasão ainda hoje na posse da família.
Na bem conhecida Nota Biográfica escrita pelo próprio Fernando Pessoa em 30 de Março de 1935, o poeta escreveu: «Ascendência geral: misto de fidalgos e de judeus.»
1891
A 19 de Maio nasceu Mário de Sá-Carneiro.
1892
Começou a escrever com quatro anos.
Infância feliz, educação dada em casa pela mãe, excelente pedagoga.
1893
Joaquim Seabra Pessoa – Pai de Fernando Pessoa
Em Janeiro nasceu o seu irmão Jorge.
A 13 Julho faleceu em Lisboa, Joaquim de Seabra Pessoa, pai de Fernando Pessoa, com 43 anos de idade, vítima de tuberculose.
A 15 de Novembro, a mãe do poeta, depois de leiloar grande parte dos seus bens, mudou-se para a Rua de São Marçal, n.º 104, 3.º, com a avó Dionísia e as duas velhas criadas.
1894
Em 2 de Janeiro morreu o seu irmão Jorge. É a segunda grande perda que sofreu em seis meses
É neste período que Fernando Pessoa criou o seu primeiro «heterônimo», o Chevalier de Pas, francês.
Entretanto Maria Madalena conheceu o comandante João Miguel Rosa, o futuro cônsul de Portugal em Durban.
1895
Fernando Pessoa os 10 anos em Durban, África do Sul
Sua mãe e o seu novo marido, o cônsul João Miguel Rosa
A 3 de Maio deu-se uma crise de demência da avó Dionísia, imediatamente internada no hospital de doentes mentais de Lisboa, onde permaneceu dois meses.
Em Julho, o comandante João Miguel Rosa, noivo de Maria Madalena, nomeado cônsul de Portugal em Durban, foi ocupar o novo cargo.
Escreveu a quadra À minha querida mamã, que tem a data de 26 de Julho.
Em 30 de Dezembro, a mãe casou por procuração, na Igreja de São Mamede, em Lisboa, com o comandante João Miguel Rosa, cônsul de Portugal em Durban, na colônia inglesa do Natal. O noivo foi representado pelo seu irmão, o general Henrique Rosa, que também era poeta.
1896
Passaporte para partir com a mãe para «o Natal, Cabo da Boa Esperança», emitido a 7 de Janeiro de 1896.
A 6 de Janeiro (o seu passaporte tem a data de emissão de 7 de Janeiro), Fernando Pessoa e a sua mãe, acompanhados de um tio-avô, o tio Cunha, partiram com destino a Durban. Viajam no navio «Funchal» até à Madeira e depois no paquete inglês «Hawarden Castle» até ao Cabo da Boa Esperança.
Em Fevereiro é inscrito na escola de religiosas irlandesas St. Joseph, de Durban, onde o ensino era ministrado em inglês.
Em 27 de Novembro nasceu a sua meia-irmã Henriqueta Madalena.
1897
Convento e catedral católica de St. Joseph (c. 1903), onde
Fernando Pessoa fez a instrução primária
Fez a instrução primária na escola de freiras irlandesas da West Street (alcançando a equivalência de cinco anos letivos em apenas três). No mesmo Instituto fez a primeira comunhão.
Nesta altura já dominava perfeitamente a língua inglesa.
1898
Em 22 de Outubro nasceu a sua outra meia-irmã, com o nome inverso da primeira, Madalena Henriqueta.
1899
High School, Durban. Aproveitamento escolar. Aprovado
no exame de admissão à Universidade do Cabo
Chega ao fim da escolaridade primária.
Em Abril ingressou no liceu Durban High School, onde permaneceu durante três anos, revelando-se um dos melhores alunos do seu curso.
Provável influência na sua formação da figura carismática do diretor do liceu, o Headmaster W. H. Nicholas, grande humanista, professor de Latim e profundo conhecedor da literatura inglesa.
Em Junho passou para o ciclo superior (Form II, A). No fim do ano, recebeu o prêmio de distinção, general excellence.
Fez a descoberta da literatura inglesa, em particular Dickens, cujos Pickwick Papers o encantam.
Inicia-se a Guerra dos Boers.
Aparecimento do primeiro «heterônimo» verdadeiro: Alexander Search, autor de poemas ingleses
W. H. Nicholas, reitor da Durban High School e
professor de Fernando Pessoa (1905)
1900
Em Janeiro foi admitido no terceiro ano do liceu (Form III); obteve o primeiro prêmio de francês.
A 11 de Janeiro nasceu o seu meio-irmão Luís Miguel.
Em Dezembro foi admitido no quarto ano (Form IV).
1901
Fernando Pessoa com treze anos
A 12 de Maio escreveu o seu primeiro poema inglês conhecido: Separated From Thee, treasure of my heart, elegia romântica sobre o tema da ausência da mulher amada.
Em Junho foi aprovado com distinção no seu primeiro exame, o «Cape School Higher Certificate Examination».
A 25 de Junho morreu a sua irmã Madalena Henriqueta.
Escreveu as primeiras poesias em inglês.
Em 1 de Agosto partiu com a família para Portugal para um ano de férias.
No mesmo barco, o paquete alemão «König», seguia o corpo da irmã falecida.
1902
Continuação da permanência em Lisboa.
Em 17 de Janeiro nasceu, em Lisboa, o seu meio-irmão João Maria.
Em Maio visitou com a mãe, o padrasto e os irmãos, a ilha Terceira, nos Açores, onde vivia a família materna. Visita destinada, também, à liquidação da herança da avó Madalena Xavier Pinheiro.
Em 5 de Maio, nos Açores, escreveu o primeiro verdadeiro poema português conhecido: “Quando ela passa”, elegia certamente inspirada pela morte de Madalena.
Escreveu poemas, ensaios e contos em inglês e em português.
Com o primo, mais ou menos da mesma idade, fundou um “jornal diário” manuscrito, intitulado «A Palavra», de um só exemplar, com a data de 15 de Maio de 1902.
No fim de Maio a família regressou a Lisboa, ficando a residir na Av. D. Carlos I, n.º 109, 3.º Dt.º
Em Junho regressaram a Durban a mãe, o padrasto, os irmãos e a criada Paciência que viera com eles.
A 18 de Julho foi publicado no «O Imparcial», de Lisboa, a poesia “Quando a dôr me amargurar…”, glosa sua a uma quadra de Augusto Gil. É considerado o primeiro texto publicado por Pessoa, que na altura contava 14 anos.
Em Setembro Fernando Pessoa voltou sozinho para a África do Sul no vapor alemão «Herzog». Em Durban, em vez de retomar os estudos clássicos no liceu, inscreveu-se na Commercial School, onde seguiu os cursos nocturnos, preparando ao mesmo tempo o exame de admissão à Universidade, e continuando a ler e escrever em inglês. Afirmava-se-lhe a vocação literária.
Fim da Guerra dos Boers.
Tentou escrever romances em inglês.
1903
Frequentou o curso nocturno da Commercial School, ao mesmo tempo que, durante o dia, se preparava nas disciplinas humanísticas para o exame de admissão à Universidade.
Com data de Julho de 1903, Fernando Pessoa projeta lançar um periódico mensal intitulado «O Palrador». Num caderno escolar encontra-se um esboço da sua primeira página, com grande profusão de diretores, todos eles avatares do próprio Pessoa. O Diretor Literário é Pedro da Silva Salles, o Artístico é Alberto Ruy da Costa e assim por diante, havendo o Redator, o Secretário de Redação, o Administrador e os Diretores Charadístico, Humorístico, das Histórias Curtas, da Seção de Sport, das Seções Restantes e das Caricaturas!
Num caderno registou, dia a dia, entre Abril e Novembro, os livros que ia lendo de autores tais como Thakeray, Júlio Verne, Chesterton, Lombroso, Grasset, Guerra Junqueiro, Albino Forjaz de Sampaio, Byron, Keats, Weber, Espronceda, Molière, Voltaire, Tolstoi, Schopenhauer, Foitillée, Shakespeare, Aristóteles, Cousin, Funck-Brentano, Ribot e Silva Passos, entre outros
A 6 de Agosto anotou que não leu nenhum livro nessse dia: “demasiado ocupado a pensar”. Projetos de obras. Queria fundar uma revista.
Escreveu vários poemas, em inglês, como Song of the obscure, inspirado por Milton e The Atheist, talvez influenciado pela Velhice do Padre Eterno, de Guerra Junqueiro.
Em Novembro fez o exame de admissão à Universidade do Cabo da Boa Esperança («Matriculation Examination»). Obteve uma classificação relativamente baixa, mas foi-lhe conferido, entre 899 candidatos, o prestigioso prêmio «Queen Victoria Memorial Prize» pelo melhor ensaio de estilo inglês.
Para preparar o exame, estudou Shakespeare, que colocará acima de todos, Milton, Addison e Steele, bem como numerosos poetas ingleses
Inventou o charadista A. A. Crosse, em nome do qual chegou a concorrer a concursos de charadas em jornais londrinos.
1904
Família de Fernando Pessoa
Embora admitido teoricamente na Universidade, uma vez que não havia cursos de ensino superior em Durban, voltou a inscrever-se na Durban High School, à testa da qual continuava o Headmaster Nicholas. Frequentou a Form VI (correspondente ao primeiro ano de um curso universitário). Leu Byron, Shelley, Keats, Tennyson e Poe. Interessou-se por Carlyle. Aprofundou a sua cultura clássica.
A 20 de Fevereiro recebeu uma carta da Universidade do Cabo comunicando-lhe que obtivera o Prêmio de Memória à Rainha Vitória, o Queen Vicloria Memorial Prize, por ter apresentado, no referido exame de admissão, o melhor Ensaio de Inglês, segundo a expressão da carta. O prêmio constava de uma seleção de livros, a escolher pelo próprio premiado, no valor de 7 libras, sobre as quais se deveriam deduzir no entanto os custos do envio pelo correio.
Escreveu poesia e prosa em inglês. Surgiram os «heterônimos» Charles Robert Anon e H. M. F. Lecher.
A 9 de Julho é publicado no “The Natal Mercury”, de Durban, o poema Hillier did first usurp the realms of rhyme…, com o pequeno com texto introdutório I read with great amusement…, sob o «heterônimo» de Charles Robert Anon.
A 16 de Agosto nasceu a sua meia-irmã Maria Clara.
Em Dezembro publicou no jornal do liceu o ensaio intitulado Macaulay. Fez o «Intermediate Examination» na Universidade do Cabo, exame de fim do primeiro ciclo de um ano nos estudos universitários de Letras (Arts”), ficando em primeiro lugar.
Com este exame terminavam os seus estudos na África do Sul.
1905
Em Agosto partiu sozinho e definitivamente para Lisboa, a bordo do vapor alemão «Herzog», confiado aos cuidados de um oficial de bordo, a fim de matricular-se no Curso Superior de Letras. Tinha concorrido a uma bolsa para prosseguir os estudos universitários na Inglaterra, que não obteve.
Em Lisboa ficou algum tempo em casa da tia-avó Maria Cunha, em Pedrouços, e depois foi viver com a tia Anica, irmã da mãe, e seus filhos, na Rua de São Bento, n.º 19, 2.º Esq.
Continuava a escrever em inglês, mas lia cada vez mais autores franceses e portugueses. Sob a influência do general Henrique Rosa, redescobriu a literatura do seu país. Lia Baudelaire, Verlaine e Mallarmé, mas também os poetas portugueses contemporâneos, principalmente Cesário Verde, de quem se sentia próximo.
1906
Em Outubro a mãe e o padrasto voltaram a Lisboa para passar seis meses de férias e Fernando foi viver com eles e os seus irmãos na Calçada da Estrela, n.º 100, 1.º. Foi também neste mês que começou a frequentar a Faculdade de Letras.
Em 11 de Dezembro morreu, em Lisboa, a sua irmã Maria Clara.
Todo esse ano iria ser consagrado à leitura: filósofos, poetas, dramaturgos, ensaístas. Escreveu também muito, de forma ainda um pouco desordenada, em inglês.
Sob o estímulo das lições de Silva Cordeiro e de outros professores do Curso Superior de Letras, Fernando Pessoa começa a escrever páginas de reflexão filosófica. Nos primeiros textos, datados precisamente de 1906, redigidos em inglês, Pessoa interroga-se em especial sobre os problemas do Ser, do Nada, da Realidade, do Infinito, da Sensação, do Erro, da Verdade, etc. Estas páginas de pensamento e de meditação metafísica, muito analíticas e interrogativas, prosseguem até 1935. António de Pina Coelho reuniu estas páginas, nos dois volumes de Textos Filosóficos.
1907
Em Maio, tendo a família regressado a Durban, foi viver com a avó Dionísia e duas tias-avós maternas na Rua da Bela Vista à Lapa, n.º 17, 1.º.
A 8 de Maio, o chefe do governo, João Franco, instaurou a ditadura. Foi a partir desse momento que Fernando Pessoa começou a apaixonar-se pela política interna portuguesa, já muito agitada nesse fim de reinado. Odiava João Franco.
O Curso de Letras é um fracasso, porque não corresponde ao que o poeta esperaria dele. Discorda dos seus métodos, da sua orientação, da atitude dos seus professores. Aliás, é um dos principais promotores de uma greve de estudantes provocada por uma das medidas de força de João Franco. Por sua livre iniciativa ou por ter sido expulso da Faculdade, abandonou definitivamente os estudos para se consagrar à literatura.
Passava por um estado depressivo, do qual tentava sair pela psicoterapia e pela ginástica sueca…
Lia os filósofos gregos e alemães; os decadentes franceses; e o livro «que destrói parte de toda esta influência»: La Dégénérescence («Entartung») de Max Nordau. Daí viria a retirar certas ideias que exprimirá cinco anos depois, nos primeiros ensaios publicados.
Em Junho escreveu o conto macabro A Very Original Dinner, assinado por Alexander Search.
Em Agosto morreu a avó Dionísia deixando-lhe uma pequena herança. Tendo visto num jornal que estava à venda uma tipografia em Portalegre, a Ibis, Tipografia Editora, com o dinheiro recebido da herança, desloca-se a esta cidade a fim de comprar a tipografia para a montar em Lisboa, a qual instalou na Rua da Conceição da Glória, 38 e 40, a «Empreza Ibis – Typographica e Editora. Officinas a Vapor», primeira etapa para a criação de uma editora.
É conhecida a carta que de Portalegre escreve ao seu amigo Armando Teixeira Rebelo dando conta das negociações. É nesta carta que se inclui o poema ainda escrito em inglês, Alentejo seen from the train.
A tipografia foi um fracasso total, mal chegou a funcionar. Depressa vai à falência, perdendo Fernando Pessoa o que lhe restava da herança da avó Dionísia
A 21 de Setembro, deprimido, escreveu, com pseudônimo, a um dos antigos professores e a um dos antigos companheiros de Durban, para pedir-lhes o testemunho sobre a saúde mental do adolescente que eles conheceram.
A 2 de Outubro, em nome de Alexander Search, fez um pacto com o diabo, em que se comprometia, paradoxalmente, a praticar o bem por toda a vida.
A saída para a crise que enfrenta surgiu-lhe naturalmente. Utilizando os conhecimentos adquiridos na Escola Comercial de Durban e sobretudo o domínio da língua inglesa, começa a ganhar a vida como correspondente comercial nesta língua, escolhendo ele próprio as suas horas de trabalho, sem sujeição a empregos e horários fixos.
Era o que verdadeiramente estava de acordo com o seu temperamento e lhe podia dar a liberdade necessária para aquilo que realmente o interessava: a criação literária.
1908
Arruinado no próprio ano em que fez vinte anos, recusou, porém, ofertas de emprego bem remuneradas. Decidiu ser “correspondente de línguas estrangeiras”, ou seja, encarregar-se da correspondência comercial em inglês e em francês, num escritório de importações e exportações da Baixa, zona citadina onde se concentravam as atividades de negócios e onde a partir dessa altura se irá desenrolar essencialmente a vida diurna. Vai exercer essa profissão em várias casas comerciais até morrer.
Em 1 de Fevereiro foram assassinados o rei D. Carlos e o príncipe herdeiro, D. Luís Filipe, na Praça do Comércio. Sobe ao trono D. Manuel II, com dezoito anos de idade.
Foi viver sozinho na Rua da Glória, n.º 4, r/c. No mesmo ano, mudou-se para um quarto alugado no Largo do Carmo, n.º 18, 1.º. Vai viver sozinho por dez anos, até ao regresso da mãe, mudando muitas vezes de residência.
Em Setembro, três anos após o regresso a Portugal, Fernando Pessoa recomeçou a escrever poesia na língua materna, da qual dirá que é sua pátria.
Fernando Pessoa aos vinte anos
Numas notas autobiográficas fala da influência que sobre a sua poesia tiveram Antero, Junqueiro, Cesário Verde, António Nobre, Garrett e António Correia de Oliveira. O intelectual com o qual confrontava estas experiências poéticas era o general Henrique Rosa, irmão do seu padrasto, homem de cultura.
Começou a escrever os primeiros fragmentos do Fausto, “tragédia subjetiva” em que irá trabalhar a vida toda sem conseguir acabá-la.
1909
Leu Garrett, António Correia de Oliveira e António Nobre; embrenha-se nos simbolistas franceses e descobre Camilo Pessanha.
Escreveu poesia em inglês, sob os «heterônimos» de Alexander Search e de Charles Robert Anon, e em português.
1910
A família mudou-se de Durban (no Natal) para Pretória, capital do Transval e da União Sul-Africana, para onde foi transferido o cônsul Rosa.
Escrevia poesia e prosa em português, inglês e francês, com declarada influência dos simbolistas franceses e de Camilo Pessanha.
A 5 de Outubro deu-se a revolução e proclamação da República em Portugal.
Exílio da família real. Governo provisório presidido pelo escritor Teófilo Braga. Separação entre Igreja e Estado. Proibição das congregações religiosas e expulsão dos jesuítas.
Em Dezembro foi fundada no Porto a revista «A Águia», dirigida na sua I Série por Álvaro Pinto, mas contendo já a colaboração de Leonardo Coimbra e de Teixeira de Pascoaes e que, dirigida por este último, será mais tarde o órgão do movimento Renascença Portuguesa, dirigido também por Pascoaes.
1911
A convite de um editor inglês, Mr. Killoge, que se propõe publicar uma antologia dos grandes autores universais em língua portuguesa, Fernando Pessoa passa grande parte deste ano a traduzir poetas e prosadores ingleses para a nossa língua. O editor convida-o a ir com ele a Inglaterra, para o ajudar na preparação da edição. Pessoa recusa-se, indicando em seu lugar um velho amigo, Armando Teixeira Rebelo
O Partido Republicano Português dividiu-se em muitas facções, entre as quais a mais radical era o Partido Democrático, dirigido por Afonso Costa. Depois de João Franco, será ele o homem que Pessoa mais vai detestar.
Período inicial da República, particularmente conturbado.
Dezembro: o poema de amor significativamente intitulado Análise inaugura o lirismo crítico que caracterizará a obra do poeta “ortônimo”, o “próprio” Pessoa.
1912
Mário de Sá-Carneiro
Em Janeiro foi fundada no Porto a Sociedade Renascença Portuguesa. “A Águia”, II Série, agora dirigida por Teixeira de Pascoaes, torna-se o órgão deste movimento.
Levado pelo general Henrique Rosa, Pessoa frequentava os cafés literários de Lisboa e neles encontrava jovens poetas, entre os quais o que se iria tornar o seu amigo dileto, Mário de Sá-Carneiro. Pertenciam todos, mais ou menos, ao movimento saudosista. Mas eram igualmente sensíveis ao neo-simbolismo de Camilo Pessanha.
Estreia literária como crítico: em Abril publicou em «A Águia» o artigo A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada, ao qual fez seguir, em Maio, uma polêmica conclusão: Reincidindo… Os dois artigos suscitaram uma vasta controvérsia que se exprimiu sobretudo no jornal «República» através de um Inquérito Literário organizado por Boavida Portugal e realizado de Setembro a Dezembro de 1912. Em Setembro saiu um terceiro artigo sobre a nova poesia portuguesa.
Nesses primeiros ensaios, profetizava o aparecimento próximo em Portugal de um poeta que ultrapassaria todos os outros: o supra-Camões.
Em Outubro Sá-Carneiro partiu para Paris e matriculando-se na Sorbonne. Deste recebe, a 20 de Outubro, a primeira da longa série de cartas que lhe enviará até à sua morte em 1916. Sá-Carneiro censura-lhe o não se dar a conhecer como poeta
Em Novembro publicou, em três números seguidos de «A Águia», o ensaio A Nova Poesia Portuguesa no seu Aspecto Psicológico .
Mudou-se para uma casa da tia Anica, na Rua de Passos Manuel, n.º 24, 3.º Esq.°.
1913
Em Janeiro escreveu os primeiros poemas esotéricos (Além-Deus e Abdicação).
Continuava a sentir-se ligado à Renascença Portuguesa e publicar colaboarações na Águia, contudo começava a exprimir um certo distanciamento crítico em relação aos homens da Águia, pois tinha um convívio diário com rapazes da sua geração, um debate de ideias diferente. Lisboa era um meio mais cosmopolita do que o Porto, estes rapazes, como Sá-Carneiro ou Santa-Rita Pintor, traziam ideias novas de Paris, as correntes mais modernas e inovadoras começam a repercutir no seu espírito. A pouco e pouco, ia-se definindo o grupo que mais tarde iria estar ligado ao movimento do Orpheu, como Mário de Sá-Carneiro, António Ferro, Almada Negreiros e Ponce de Leão. O Martinho e as duas Brasileiras, a do Rossio e a do Chiado, são os cafés mais frequentados.
Em 29 de Março escreveu o poema Impressões do Crepúsculo, que vai estar na origem do movimento “paulista”, pós-simbolista e decadente.
Em Maio escreveu em inglês seu primeiro poema erótico, Epithalamium.
Na Águia publicou o famoso artigo sobre As caricaturas de Almada Negreiros, que inaugura a amizade entre o poeta e o artista, também poeta.
A 23 de Junho, Sá-Carneiro retornou provisóriamente a Lisboa.
Em 21 de Julho, Pessoa escreveu um poema esotérico intitulado Gládio, que utilizará vinte anos depois na Mensagem com o título D. Fernando, Infante de Portugal, dando-lhe sentido nacionalista.
Em Agosto foi publicado em A Águia o primeiro texto poético em prosa, Na Floresta do Alheamento, apresentado como fragmento “do Livro do Desassossego, em preparação”. Pessoa vai trabalhar nesse livro toda a vida, sem poder acabá-lo. Irá atribuí-lo ao “semi-heterônimo” Bernardo Soares.
Em 11-12 de Outubro escreveu, em 48 horas, O Marinheiro, “drama estático” em prosa.
A 22 de Novembro iniciou a sua colaboração no semanário «Teatro» de Boavida Portugal.
1914
Coleccionou e traduziu para inglês, a convite de um editor de Londres, 300 provérbios portugueses.
Publicou na revista «A Renascença», de Lisboa, número único, Pauis e Ó Sino da Minha Aldeia, sob o título único de Impressões do Crepúsculo. Começava a desenvolver-se o «paulismo».
Escreveu um pequeno texto sobre a quadra popular (ele e outros como Mário de Sá-Carneiro, João de Barros, Augusto Gil, Afonso Lopes Vieira ou João Lúcio), para o Missal de Trovas, de António Ferro e do seu futuro cunhado Augusto Cunha.
Sá-Carneiro regressa a Portugal.
8 de Março: «dia triunfal» da sua vida; surgiu Alberto Caeiro e escreveu os poemas do Guardador de Rebanhos. Quase em resposta a Caeiro, o «ortônimo» escreveu a seguir os seis poemas de Chuva Oblíqua, texto-chave do Interseccionismo, transposição literária do cubismo. É também deste período o aparecimento de Álvaro de Campos.
Em Maio Fernando Pessoa mudou-se, com a tia Anica e a sua família, para a Rua Pascoal de Melo e escreveu fragmentos da Teoria da República Aristocrática.
Em Março escreveu a Ode Triunfal, atribuída a Álvaro de Campos, que publicou como datada de Junho. Em seguida escreveu Opiário, poesia, igualmente de Álvaro de Campos.
Em Maio Sá-Carneiro retornou a Paris.
São de 12 de Junho as primeiras Odes de Ricardo Reis, segundo «heterônimo» pagão, discípulo de Caeiro.
A 25 de Agosto Sá-Carneiro deixou Paris.
A 8 de Setembro escreveu uma carta ao filósofo Sampaio Bruno, expondo o seu interesse pelo sebastianismo, mito do rei D. Sebastião, morto em Marrocos em 1578, rei que encarna a esperança lusitana, para além da história temporal.
Foi por esta altura que se deu a sua ruptura com a Renascença Portuguesa, que teria como causa próxima o desentendimento com Álvaro Pinto e com a direção da Águia, devido ao desinteresse ou à recusa em publicarem o “drama estático” O Marinheiro. Outra hipótese seria a rejeição por parte dos homens da Águia, da sua obra já publicada. Depois da euforia criativa dos heterônimos, do Paúlismo e do Interseccionismo, a rejeição dos homens da Águia, que admirava e sobre quem tinha escrito páginas ditirâmbicas, tinha caído sobre a sua cabeça como um verdadeiro balde de água fria.
No Outono deste ano começaram as reuniões na Cervejaria Jansen, à Rua Victor Cordon, do grupo de que sairá «Orpheu».
Em Novembro a tia Anica partiu para a Suíça com a filha e o genro. Fernando Pessoa deixou a casa da Rua Pascoal de Melo, passando a viver novamente num quarto alugado. Atravessa uma profunda crise depressiva, mas a 21 de Novembro escreveu, numa página de jornal, que neste dia adquire plena posse do seu génio. “Um raio hoje deslumbrou-me de lucidez. Nasci.”
1915
Em Janeiro escreveu a primeira versão do poema erótico Antinous, em inglês, e, em português, Ela canta, Pobre ceifeira…, onde exprime a dor de não poder fazer coincidir a felicidade da inocência e a consciência de si mesmo.
A 19 de Janeiro escreveu a famosa carta a Armando Côrtes-Rodrigues, carta que funciona como um programa de vida.
Saiu em Março o primeiro número de «Orpheu», órgão do que se chamará depois o Modernismo, que irá abalar a sensibilidade de seu tempo. Acolhido com irritação e troça pela crítica e pelo público, que trazia entre outras coisas O Marinheiro de Pessoa, Opiário e Ode Triunfal de Campos. Os diretores eram Luís de Montalvor e Ronald de Carvalho.
Outros colaboradores: Mário de Sá-Carneiro, Alfredo Pedro Guisado, José de Almada Negreiros, Armando Côrtes-Rodrigues e também Luís de Montalvor e Ronald de Carvalho. Por blague o editor foi António Ferro, um dos mais novos do grupo. Não o podia ser legalmente, visto não ter ainda atingido a maioridade (tinha 19 anos, a maioridade nesse tempo era aos 21 anos).
Pessoa alugou um quarto na Rua D. Estefânia, n.º 127, r/c Dt.º (quarto alugado em casa de uma engomadeira).
De 4 a 21 de Abril colaborou no quotidiano «O Jornal» de Boavida Portugal, na rubrica Crônica da Vida que Passa, com seis crônicas. Em Maio publicou, no panfleto clandestino de João Camoesas, «Eh Real!», o artigo O Preconceito da Ordem.
Em 26 de Maio, na sequência das perturbações provocadas pelo Partido Democrático, de Afonso Costa, o presidente da República, demissionário, foi substituído por Teófilo Braga.
Os pintores Sonia e Robert Delaunay, criadores do “orfismo”, refugiam-se em Portugal para escapar à guerra e por intermédio do pintor Souza-Cardoso, entram em contato com o grupo do Orpheu.
Em Junho saiu o segundo número de «Orpheu». Os diretores eram Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa. Pessoa publicou Chuva Oblíqua e Campos a Ode Marítima.
Em Julho «A Capital» publicou uma local de tom sarcástico contra o grupo de «Orpheu», e Campos enviou ao diretor do jornal uma carta de resposta que termina com uma alusão irreverente ao desastre sofrido, havia pouco, pelo político Dr. Afonso Costa. Alfredo Pedro Guisado e António Ferro, indignados, abandonam «Orpheu»; Sá-Carneiro e Almada também se dissociam da atitude de Álvaro de Campos. É de crer que Fernando Pessoa não tenha ligado importância nenhuma ao caso, pois continuou a dar-se com todos estes amigos.
Em 11 de Junho Álvaro de Campos escreveu a Saudação a Walt Whitman, onde presta homenagem àquele que, através de Caeiro, reconhece como mestre.
Sá-Carneiro, voltou para Paris, de onde em 13 de Setembro escreveu a Pessoa anunciando-lhe que por motivos económicos o projeto de «Orpheu 3» ficava anulado. O pai de Sá-Carneiro financiara os dois números anteriores do Orpheu. Pessoa renuncia a publicar o n.º 3 da revista, apesar de já composto
Para a Livraria Clássica Pessoa traduziu o Compêndio de Teosofia de C. W. Leadbeater, o que lhe reforça o interesse pelas doutrinas secretas.
Embora continuasse a escrever poemas atribuídos a Caeiro, considerava que o poeta pagão morrera em 1915.
Em Dezembro surge nova crise política, sob o governo de Afonso Costa.
Estado de depressão de Pessoa, agravado pela notícia da doença da mãe, que estava hemiplégica em Pretória, vítima de trombose. Pessoa estava desesperado.
1916
Pessoa mudou frequentemente de habitação: um quarto alugado na Rua Antero de Quental, outro na Rua Almirante Barroso, outro enfim na Rua Cidade da Horta.
Publicou na revista «Exílio» (Abril) o poema Hora Absurda.
A 15 de Abril nasceu o governo de “união sagrada”.
São publicadas as suas traduções de obras de teosofia. Interessa-se igualmente pela astrologia e chega a pensar em fazer dela a sua profissão. Faz experiências de espiritismo. Parece experimentar realmente fenómenos de natureza mediúnica, do que deu testemunho na longa carta à Tia Anica, onde descrevia manifestações de telepatia.
Escreve as primeiras páginas de um livro que deveria chamar-se precisamente O Regresso dos Deuses, uma Introdução geral ao neopaganismo português, cuja autoria seria atribuída a outro «heterônimo», António Mora.
A 26 de Abril, depois de muitas vezes o ter anunciado, Sá-Carneiro suicidou-se em Paris, no Hotel de Nice, em Montmartre. Depois de convocar um amigo, José Araújo, para assistir à sua morte, toma cinco frascos de arseniato de estricnina, deitado na cama e vestido de smoking, tendo uma morte horrível. Tinha 25 anos. A notícia do desaparecimento trágico do amigo deixou Pessoa transtornado. É no dia seguinte, por um amigo comum, Carlos Alberto Ferreira, que Fernando Pessoa tem a notícia.
Alguns dias depois, escrevendo a Côrtes-Rodrigues, comenta: Uma morte horrorosa… Uma grande desgraça!… Mas só muitos anos depois, contudo, um ano antes de morrer, em 1934, libertaria Fernando Pessoa, num poema que não chegou a dar por terminado e figurava entre os seus papéis, a mágoa profunda pela morte do companheiro: Não mais, não mais, e desde que saíste / Desta Prisão fechada que é o mundo, / Meu coração é inerte e infecundo / E o que sou é um sonho que está triste.
A 9 de Maio a Alemanha declarou guerra a Portugal. O governo e a esquerda portuguesa eram favoráveis aos Aliados, mas certas elites, a opinião pública e o próprio Pessoa eram pró-alemães.
Em 22 de Maio Campos começou a escrever a ode intitulada Passagem das Horas, que contém a sua divisa: “Sentir tudo de todas as maneiras”.
A 4 de Setembro, depois de todos os maus momentos que passou, resolveu “reconstruir-se”, como diz numa carta a Côrtes-Rodrigues; e começou por suprimir o acento circunflexo do seu nome (Pessoa em vez de Pessôa).
Em Outubro é publicada em revista a sequência de sonetos esotéricos intitulada Passos da Cruz, que aliás vinham sendo já trabalhados desde 1914.
1917
O governo português interveio na guerra enviando um corpo expedicionário para a frente francesa. Pessoa confia aos seus escritos pessoais as suas reflexões e as suas angústias acerca do conflito mundial.
Enviou ao editor londrino Constable o manuscrito de uma coletânea de poemas ingleses, Tbe Mad Fiddler (O Rabequista Mágico na tradução de Luísa Freire).
A 14 de Abril realizou-se, no Teatro República, a conferência «futurista» de Almada Negreiros, que causou escândalo.
A 6 de Junho, Constable devolveu o manuscrito ao autor, acompanhado de uma carta de recusa.
Em Novembro saiu o primeiro e único número de «Portugal Futurista» que continha poemas de Fernando Pessoa «ortônimo» e o Ultimatum de Álvaro de Campos. A revista foi apreendida pela polícia. Não viria a sair mais nenhum número.
Com Augusto Ferreira Gomes e o Eng. Geraldo Coelho de Jesus, Pessoa abriu um escritório de comissões e consignações na Rua de S. Julião, n.º 45, 2.º (depois transferido para a Rua do Ouro, n.º 87, 2.º).
Em 5 de Dezembro, na sequência de um período de perturbações, Afonso Costa foi preso. Golpe de Estado do major Sidônio Pais, que instaurou uma ditadura, a chamada República Nova, regime de ditadura reformista e nacionalista
Nesta altura Fernando Pessoa passa a viver na Rua Bernardim Ribeiro, n.º11, 1.º
1918
Em 9 de Abril as tropas portuguesas participaram heroicamente na batalha de La Lys.
A 29 Abril, morreu Santa-Rita Pintor e a sua obra é queimada segundo a sua última vontade.
A 9 de Maio, Sidónio Pais foi eleito presidente da República.
Os três sócios, Pessoa, Ferreira Gomes e Coelho de Jesus, trespassaram o escritório de representações.
Sidónio Pais
Pessoa publicou em duas «plaquettes» do autor (com a indicação editorial «Monteiro & Co.»), os poemas ingleses Antinous e 35 Sonnets que em Setembro foram objeto da atenção da crítica britânica no «Times» e no «Glasgow Herald».
Em Outubro morreu Amadeo de Souza-Cardoso, vítima da epidemia da gripe espanhola.
Em 14 de Dezembro, Sidónio Pais foi assassinado na estação do Rossio, no centro de Lisboa. Pessoa, que via nele o salvador da Pátria, fica profundamente abalado. Abriu-se em Portugal uma profunda crise política.
Pessoa passou a morar na Rua Sto. António dos Capuchos.
1919
Em Janeiro rebentou a revolta monárquica, imediatamente reprimida. Ricardo Reis, monárquico, exilou-se no Brasil, o que não impedia que o seu criador continuasse a escrever Odes assinadas por ele.
Em Abril publicou um ensaio político favorável ao “sidonismo”, intitulado Como Organizar Portugal, na revista «Ação», órgão do Núcleo de Ação Nacional.
Cônsul João Miguel Rosa, falecido em 5 de Outubro de 1919
Escreveu os Poemas Inconjuntos de Alberto Caeiro, com a data fictícia de 1913-1914, por coerência diacrônica com a biografia do heterônimo, morto em 1915.
A 10 de Junho, que resolve dirigir-se a dois psiquiatras franceses, Hector e Henri Durville, ligados a um Instituto de Magnetismo Experimental. Está interessado em seguir o seu curso por correspondência sobre magnetismo pessoal, porque situa em deficiências de vontade o principal do seu problema. Descreveu-se a si próprio como “histeroneurasténico”.
A 5 de Outubro faleceu em Pretória, onde estava colocado como Cônsul de Portugal, o seu padrasto, comandante João Miguel Rosa. Maria Madalena começou a tratar do regresso a Portugal.
Pessoa morava nesta altura na Avenida Gomes Pereira, em Benfica, dedicando-se à ensaística política.
1920
Em 30 de Janeiro é publicado na revista inglesa «The Athenaeum», dirigida pelo crítico John Middleton Murry, onde colaborava o melhor da nova geração literária inglesa da época, como Katherine Mansfield (sua mulher), Aldous HuxIey, T. S. Elliot, Bertrand Russel, Virginia Woolf ou Herbert Reado, o poema Meantime, e em «Ressurreição» o soneto Abdicação.
Ainda impressionado pela morte violenta do chefe da República Nova, Fernando Pessoa escreve, a 27 de Fevereiro, a ode À Memória do Presidente-Rei Sidónio Paes.
Ophelia Queiroz
Por esta altura no escritório «Félix, Freitas e Valladas, Lda», de que era correspondente, conheceu Ophelia Queiroz, com a qual estabelece uma relação sentimental (Março). Data de 1 de Março a sua primeira carta dirigida a Ophelia. Um dos patrões, Freitas, é primo de Pessoa.
Em 27 de Fevereiro foi publicado em revista o poema À Memória do Presidente-Rei Sidónio Pais.
Prevenido da chegada iminente da mãe, dos irmãos e da irmã, a 28 de Março aluga um andar na Rua Coelho da Rocha, n.º 16, 1.º Dto., no bairro de Campo de Ourique, onde irá habitar com a mãe e os irmãos. É nesse prédio – hoje a Casa Fernando Pessoa – que vai residir até a morte.
Em 30 de Março, a bordo do navio Lourenço Marques, sua mãe e seus irmãos regressam definitivamente a Portugal.
Participava frequentemente, com o nome de A. A. Crosse, nos concursos charadísticos do «Times». Escreveu uma série de epitáfios em inglês.
Rua Coelho da Rocha, n.º 16, 1.º Dto., em Lisboa, onde irá habitar com a mãe e os irmãos, e depois sózinho, até à sua morte.
Atualmente é a «Casa Fernando Pessoa»
A 15 de Outubro, com violenta crise de depressão, decide ir tratar-se numa clínica psiquiátrica, mas acaba por desistir.
A 29 de Novembro envia a Ophelia uma carta de rompimento: “O amor passou… O meu destino pertence a outra Lei, cuja existência a Ophelinha ignora, e está subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que não permittem nem perdoam…”
Escreveu a série de poemas ingleses intitulada Inscriptions.
1921
Em 1 de Janeiro escreveu um poema que dá o tom de seu estado de espírito: “Cansa ser, sentir dói, pensar destrui…”
Fernando Pessoa
Fundou com alguns amigos uma casa editora e comercial, «Olisipo» (nome mítico de Lisboa, cujo fundador epónimo é Ulisses) onde irá publicar os seus English Poems: I – Antinous, II – Inscriptions e English Poems: III – Epithalamium e A Invenção do Dia Claro de Almada Negreiros. Esta «Olisipo» constitui aliás a sua segunda tentativa (depois da malograda Ibis) como editor.A 19 de Outubro dá-se a “noite sangrenta”, em que são assassinados muitos fundadores da República.
Neste ano António Sérgio, Raul Proença. Aquilino Ribeiro e Jaime Cortesão fundaram em Lisboa a revista Seara Nova.
1922
Colaborava nesta altura, com assiduidade, na revista «Contemporânea», fundada por José Pacheco, que fora o orientador gráfico do Orpheu e que estava muito ligado ao grupo. Aliás, a revista, editada com bom gosto, exemplo perfeito da estética do primeiro modernismo, é dominada pelos poetas e artistas “órficos”, a que se juntam alguns novos. É contudo mais ecléctica. No primeiro número (Maio) saiu a novela O Banqueiro Anarquista; no terceiro (Setembro) António Botto e o Ideal Estético em Portugal. Este artigo irá provocar uma polêmica resposta de Álvaro Maia no número quatro (Novembro) intitulada Literatura de Sodoma.
A Editora Olisipo publicou a 2.ª edição das Canções de António Botto.
Em Outubro são publicados em revista doze poemas de Mar Português, que voltarão a aparecer na Mensagem.
Em Dezembro foi publicado em revista o poema esotérico Natal, cujo último verso lhe exprimia a fé gnóstica: “Não procures nem creias: tudo é oculto”.
1923
A Editora Olisipo publicou o folheto Sodoma Divinizada, assinado por Henoch (Raul Leal) que é alvo do ataque da Liga dos Estudantes de Lisboa. O folheto foi apreendido por ordem do governador civil e a mesma sorte coube às Canções de António Botto. Um grupo de estudantes católicos integristas ataca-o violentamente, tratando Leal de louco. Álvaro de Campos publicou em defesa dos amigos os opúsculos Sobre um Manifesto de Estudantes das Escolas Superiores de Lisboa e Aviso por causa da moral.
Em Março-Abril, Campos e, em seguida, o “próprio” Pessoa respondem aos estudantes. Pessoa, para defender Leal, exalta a loucura: “Loucos são os heróis, os santos, os génios … ”
Continuou a sua colaboração na «Contemporânea» onde publicou, entre outros textos, as Trois Chansons Mortes (n.º 7) e Lisbon Revisited, 1923 de Campos (n.º 8).
Em 17 de Julho assinou o protesto de intelectuais portugueses (entre outros: Raul Brandão, António Sérgio, Aquilino Ribeiro, Luís de Montalvor, Jaime Cortesão) contra a proibição censória de Mar Alto de António Ferro.
António Botto publicou Motivos de Beleza com uma nota de Pessoa.
Em Setembro escreveu muitas Odes de Ricardo Reis.
É neste mesmo ano, por outro lado, que Pessoa começa a trabalhar num novo poema de índole patriótica e mística, um poema longo, intitulado Quinto Império, que aliás só dará por findo em 1935.
A 13 de Outubro em entrevista concedida a um jornalista sobre “o futuro de Portugal”, que foi profetizado por Bandarra, o Nostradamus português, no “Quinto Império”: a vocação lusitana é a universalidade. “Ser tudo, de todas as maneiras”.
1924
Faleceu o general Henrique Rosa, irmão do seu padastro.
Pessoa dedica-se à criação de uma nova revista, de inspiração clássica, que tem por molde a Grécia antiga e que Pessoa dirigiu com o pintor Ruy Vaz.
Nela vai publicar as obras de três poetas pagãos: Caeiro, Reis e Campos.
Em Outubro foi publicado o primeiro número da «Athena», que contém, junto com um manifesto, vinte Odes de Ricardo Reis, até então inéditas
Em Novembro saiu o segundo número da «Athena», que contém um elogio fúnebre de Sá-Carneiro e um ensaio de Campos.
Em Dezembro publicou-se o n.º 3 da «Athena»: Apontamentos para uma Estética Não-Aristotélica, de Campos, e elegias de Pessoa.
Foi também na «Athena» que Pessoa publicou as suas magníficas traduções de poemas gregos, de La Gioconda de Walter Pater, de dois contos de O’Henry, dos poemas finais de Edgar Poe e de A Decisão da Georgia, também de O’Henry.
1925
Em Janeiro saiu o n.º 4 da «Athena»: 23 poemas do Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro, que tinham ficado inéditos, e traduções de Edgar Allan Poe.
Em Fevereiro saiu o n.º 5 de «Athena»: Poemas Inconjuntos, de Alberto Caeiro. Com o número de Fevereiro, «Athena» cessou a sua publicação.
No dia 17 de Março faleceu, na Quinta dos Marchais, na Buraca, em Lisboa, D. Maria Magdalena, mãe de Fernando Pessoa.
Em Abril, Pessoa começou a ser reconhecido; o jovem poeta José Régio, numa tese para um diploma de estudos superiores de Letras, apresentou-o como o maior poeta português contemporâneo.
A irmã Henriqueta e o marido, o coronel Caetano Dias, foram viver com ele.
A 31 de Agosto escreveu uma carta a um amigo sobre o seu estado psíquico, que o inquietava; novamente queria ser hospitalizado.
O poeta e crítico Mário Saa publicou o volume A Invasão dos Judeus, onde Pessoa era uma das personagens analisadas pelo bizarro ensaísta.
Em 16 de Novembro nasceu a sobrinha, Manuela Nogueira, filha de Henriqueta, hoje uma das poucas testemunhas do fim da vida do poeta.
1926
Saiu em Janeiro o primeiro número da «Revista de Comércio e Contabilidade» que Pessoa dirigia com seu cunhado, o coronel Francisco Caetano Dias, e onde Pessoa publicou o artigo A Essência do Comércio.
A 26 de Abril, Álvaro de Campos, após longo silêncio, escreveu o segundo Lisbon Revisited e o primeiro de uma série de poemas que exprimem a sensação do fracasso absoluto: “Se te queres matar, porque não te queres matar?”
Em Maio foi publicado em revista o poema O Menino da Sua Mãe, escrito alguns dias antes.
A 28 de Maio verificou-se o golpe militar que põe fim à Primeira República e instaurou a ditadura, dirigido pelo general Gomes da Costa, antigo chefe do corpo expedicionário português na Flandres. Por coincidência neste mesmo dia o «O Jornal do Commercio e das Colônias» publicou uma resposta de Pessoa a um inquérito de natureza política que tinha por título Portugal, Vasto Império, em que se propõe “renovar” o mito sebastianista..
A 28 de Maio de 1926 verifica-se o golpe militar que põe fim à Primeira República e instaura a ditadura.
O Triunvirato: Gomes da Costa, Mendes Cabeçadas e Oscar Carmona
28 de Maio: publicação num jornal da sua resposta a uma pesquisa.
A 4 de Junho Gomes da Costa instaurou uma ditadura militar.
A 9 de Julho Gomes da Costa foi obrigado a retirar-se para os bastidores em favor do general Carmona.
Em Agosto Pessoa registou a patente de invenção de um «Anuário indicador sintético, por nomes e outras quaisquer classificações, consultável em qualquer língua».
A 17 de Setembro é publicado num jornal a resposta de Campos a uma pesquisa do amigo Ferreira Gomes: afirma o poeta a pouca realidade da sua existência, e de toda a existência.
Publicou em «Sol», n.º 1, a crônica: Um Grande Português – Narração exata e comovida do que é o Conto do Vigário, e em «Contemporânea» (n.º 1, 3.ª série) o poema O Menino da sua Mãe.
1927
Em Fevereiro houve uma tentativa de revolta dos republicanos, duramente reprimida pela Junta instalada no poder.
Saiu em Março o primeiro número da revista «presença», dirigida por João Gaspar Simões e José Régio, órgão do que se virá a chamar Segundo Modernismo Português.
No terceiro número da «Presença», de 8 de Abril, no artigo Da geração modernista, José Régio reconheceu em Pessoa o Mestre da nova geração de poetas. A partir daqui, os homens da «Presença» valorizarão e estudarão cada vez mais o génio de Pessoa, em especial Adolfo Casais Monteiro e João Gaspar Simões, vindo este a escrever alguns anos depois a mais completa biografia do autor de Mensagem.
A 4 de Junho, Pessoa inicia a sua colaboração na «Presença» com o poema Marinha e Campos com Ambiente.
A 18 de Julho são publicadas na «Presença» algumas Odes de Ricardo Reis.
1928
Em Janeiro foi publicado o panfleto Interregno: Defeza e Justificação da Dictadura Militar em Portugal (O), manifesto político do Núcleo de Ação Nacional que devia ter saído anónimo, e que o autor acabou por renegar.
Em 15 de Janeiro, Campos escreveu Tabacaria, poema do fracasso e da resignação desesperada.
Em 15 de Março o general Carmona foi eleito presidente da República.
Abril-Setembro foi um período de criação intensa, em que Pessoa, Reis e Campos escrevem numerosos poemas, alguns dos quais seriam publicados em revista. Pessoa escreve também inúmeras páginas de prosa destinadas a ensaios políticos, que permaneceram todos inacabados.
Em 18 de Abril havia um novo governo, ainda presidido por um militar, mas cujo homem forte era o professor Oliveira Salazar, economista reputado, como Ministro das Finanças.
Em 12 de Agosto, Pessoa publicou o artigo O Provincianismo Português, no «Notícias Ilustrado».
De Setembro a Dezembro, Pessoa escreveu muitos poemas de inspiração nacionalista mística, que vão constituir a Mensagem.
Com José Pacheco, Mário Saa, António Botto e outros, Pessoa fundou a «Solução Editora».
1929
Organizou com António Botto uma Anthologia de Poemas Portuguezes Modernos.
Em 27 de Março escreveu Insônia, um dos poemas mais desesperados de Campos.
Em Junho saiu o primeiro estudo crítico sobre a poesia de Pessoa, da autoria de João Gaspar Simões.
Em Julho são publicados em revista dois fragmentos do Livro do Desassossego, “composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa.”
A 2 de Setembro, por intermédio do jovem poeta Carlos Queiroz, sobrinho de Ophelia e amigo de Pessoa, a quem este ofereceu uma fotografia sua com a legenda “Fernando Pessoa em flagrante delitro” em que aparece bebendo, reacendeu a relação sentimental com Ophelia Queiroz. A 11 de Setembro escreve-lhe a primeira da segunda série de cartas de amor
Fernando Pessoa na adega de Abel Pereira da Fonseca, em 1929. Esta fotografia enviou-a ele a Ophelia Queiroz com a inscrição: «Fernando Pessoa em flagrante delitro»
Em Dezembro recebeu um livro do “mago” inglês Aleister Crowley, e enviou-lhe os seus poemas ingleses.
1930
A 11 de Janeiro escreveu a última carta a Ophelia, na qual lhe enviava o Poema Pial. A carta termina com um “até logo”. Desta vez, rompeu sem explicações, mas num dos escaninhos profundos da sua alma complexa, Fernando Pessoa nunca deixaria de amar Ophélia, embora à sua maneira, idealmente, conhecendo a impossibilidade que o afastava definitivamente de uma relação concreta, carnal, real. Durante meses, passara todos os dias junto da janela de Ophélia, para a ver ou lhe acenar cá de baixo.
No dia de Natal deste ano de 1930, evoca-a com saudade, no poema que principia: Por trás daquela janela / Cuja cortina não muda / Coloco a visão daquela…
A 13 de Junho escreveu Aniversário, poema de Álvaro de Campos, publicado alguns dias depois na «Presença», datado ficticiamente de 15 de Outubro de 1929, já que Campos “nasceu” nesse dia (em 1890).
O francês Pierre Hourcade, leitor na Universidade de Coimbra, amigo dos poetas da «Presença», publicou em Paris, na revista «Contacts», um artigo sobre Pessoa.
“Num domingo de Junho”, num café da Baixa, encontrou, pela primeira vez, os jovens admiradores de Coimbra, Régio e Gaspar Simões, que ficaram desconcertados com a sua atitude.
A 29 de Agosto recebeu um telegrama de Crowley anunciando sua chegada
A 2 de Setembro Pessoa recebeu em Lisboa a visita do famoso mago inglês Aleister Crowley, também conhecido nos meios ocultistas por Mestre Therion e A Besta 666, que depois desapareceu em circunstâncias misteriosas na Boca do Inferno, em Cascais. Sobre o episódio Pessoa foi entrevistado no «Notícias Ilustrado» de Outubro.
A 25 de Setembro deu-se o misterioso desaparecimento de Crowley, o que rende muito assunto aos jornais: atirou-se ao mar dos rochedos de Cascais. Inquérito da polícia. A Scotland Yard é avisada. Tudo não passa, afinal, de brincadeira, armada em conjunto pelo poeta e pelo mago, com a colaboração do poeta e também astrólogo Augusto Ferreira Gomes, muito amigo de Fernando Pessoa, o qual publicou um reportagem em estilo sensacionalista, no «Notícias Ilustrado». Pessoa revelará a Gaspar Simões que Crowley lhe escreveu da Alemanha após o “suicídio”.
Intenso período de criação heteronímica.
Em Dezembro foi publicado na «Presença» o poema de Pessoa influenciado por Crowley, O Último Sortilégio, que ilustra a “magia da transgressão”. Propõe a Gaspar Simões que publique também o Hino a Pã, do seu mestre e amigo, traduzido por ele.
1931
Em Janeiro publicou na «Presença» as Notas à Memória do Meu Mestre Caeiro, de Álvaro de Campos, e o poema VIII do Guardador de Rebanhos, poema este que celebra o Menino Jesus, deus pagão.
A 1 de Abril escreveu a Autopsicografia, a sua “Arte Poética”; nela define o poeta como aquele que “finge” os sentimentos expressos, ainda quando os sente realmente.
Publicou na «Presença» a tradução do Hino a Pã de Aleister Crowley.
Em Setembro foram publicados em revista cinco fragmentos do Livro do Desassossego.
Escreveu uma extensa carta a João Gaspar Simões na qual teorizava as suas opiniões quanto à «ficção» em literatura, manifestando um substancial e irônico desacordo em relação às teorias freudianas.
Foi neste ano que se deu a efetiva interrupção da sua relação sentimental com Ophelia (e não de 1930, como deixam crer as Cartas de Amor de Fernando Pessoa). Durante os primeiros três meses Ophelia escreveu-lhe doze cartas; a última era de 29 de Março.
1932
Em Março foi publicado na «Presença» o poema esotérico Iniciação, cujo último verso lhe afirma a fé gnóstica: “Neófito, não há morte”.
Em 5 de Julho Salazar foi nomeado presidente do Conselho de Ministros.
Em 16 de Setembro envia sua candidatura ao cargo de conservador-bibliotecário no Museu-Biblioteca Condes de Castro Guimarães, em Cascais, apoiada por Pierre Hourcade e João Gaspar Simões. A candidatura foi posteriormente rejeitada.
Escreveu o prefácio do livro de poemas do amigo Elieser Kamenezky, Alma Errante.
Em Novembro publicou em «Fama», dirigida por Augusto Ferreira Gomes, o artigo O Caso Mental Português.
Também em Novembro, António Ferro, antigo companheiro dos tempos do Orpheu, que fora nomeado secretário da Propaganda Nacional, define o salazarismo como “política do Espírito”, adoptando o título de uma conferência de Paul Valéry.
1933
Em Janeiro, Pierre Hourcade publicou nos «Cadernos do Sul», em Marselha, as suas traduções de Pessoa, precedidas de um texto de apresentação.
Em Fevereiro Salazar promulgou a nova Constituição, que instituia o Estado Novo, corporativo e ditatorial.
Atravessava nesta altura outra profunda crise psicológica, mas não desiste do trabalho literário. Intensa atividade criativa, como «ortónimo», e crítica (copiou o original de Indícios de Oiro de Sá-Carneiro a fim de ser editado na «Presença» e escreveu um novo estudo sobre António Botto).
Em 11 de Março, António Ferro enviou a Pessoa o seu livro Salazar.
Em Abril publicou na «Presença» o poema intitulado Isto, que lhe completava a “Arte Poética”: “Sinto com a imaginação…
Em Julho foi publicado o poema Tabacaria na «Presença».
A 8 de Julho escreveu o poema esotérico Eros e Psique.
Em 7 de Novembro, Campos escreveu seguidamente dois poemas contraditórios: Psicotipia, sobre a impossibilidade do amor, e Magnificat, em que se exprime uma esperança: “Sorri, minha alma, será dia!”
Em 19 de Dezembro, Campos escreveu o poema Datilografia, em que exprime a ideia de que temos todos duas vidas, a verdadeira, que é sonhada, e a falsa, que é vivida.
1934
De Janeiro a Março concebeu a organização definitiva do livro nacionalista místico inicialmente intitulado Portugal; escreve os dez poemas que faltavam à coletânea.
Em Março, no ambiente de nacionalismo populista típico do salazarismo, retomou a composição de Quadras ao Gosto Popular, que iniciara de forma pouco sistemática um quarto de século antes. Viria a escrever mais de trezentas num ano.
A 26 de Março escreveu o poema sobre As Ilhas Afortunadas (onde D. Sebastião, o “Desejado”, o rei “Encoberto”, aguarda a hora do regresso). O livro Portugal ficava assim completo.
Em Maio foi publicado, na «Presença», Eros e Psique, precedido de um extrato do ritual iniciático dos templários, sobre a superação das contradições.
Em Outubro publicou Mensagem, título que substituiu Portugal, e concorreu com este volume ao prêmio «Antero de Quental» do Secretariado de Propaganda Nacional, organismo dirigido por António Ferro, seu velho amigo e companheiro do tempo do Orpheu. Foi-lhe conferido o prêmio de Categoria B, no valor de 1000$00, por uma pretextuosa questão de número de páginas. O prêmio da Categoria A (volume superior a 100 páginas), no valor de 5000$00, foi atribuído ao sacerdote Vasco Reis pelo volume Romaria. O júri era composto por Alberto Osório de Castro, Mário Beirão, Acácio de Paiva e Teresa Leitão de Barros.
Muita polêmica se fez em redor desta situação, parecendo Fernando Pessoa subalternizado relativamente a um poeta de qualidade incontestavelmente menor.
Não terá sido o júri, onde pontificava Mário Beirão, excessivamente legalista e rigorista para com Fernando Pessoa? Parece-nos que sim. O certo, no entanto, é que o presidente do júri, António Ferro, que só podia votar em caso de empate, imediatamente elevou o prêmio atribuído à Mensagem, de 1000$00 para 5000$00
Para além desta polêmica, resta-nos contudo o testemunho do próprio Fernando Pessoa, num escrito encontrado no espólio e escrito em 1935: Publiquei em Outubro passado, pus à venda, propositadamente, em 1 de Dezembro, um livro de poemas, formando realmente um só poema, intitulado “Mensagem”. Foi esse livro premiado, em condições especiais e para mim muito honrosas, pelo Secretariado da Propaganda Nacional.
Neste escrito, Pessoa faz teoria, explicando o conteúdo do seu patriotismo (a fraternidade patriótica), expondo o seu liberalismo e sugerindo o fundo rosa?cruciano do poema.
Podemos interrogar-nos: porque diz ter sido o seu livro premiado em condições especiais, e para mim muito honrosas? Devido à intervenção pessoal de António Ferro? A tratar-se da primeira consagração pública e oficial da sua obra? Interrogações a que não é fácil dar uma resposta objetiva…
Em Dezembro prefaciou o volume Quinto Império, de Augusto Ferreira Gomes.
A 23 de Dezembro sai um artigo sobre Mensagem num jornal.
28 de Dezembro é publicado o poema esotérico Natal noutro jornal.
1935
A 13 de Janeiro escreveu uma extensa carta a Adolfo Casais Monteiro na qual lhe explica com pormenores, mais de vinte anos depois, a experiência do “dia triunfal” e a génese dos heterônimos. Noutra carta, de 20 de Janeiro, define-se como dramaturgo cujas diversas personalidades dialogam entre si. Apresenta também a heteronímia como exploração de seu próprio ser. “Não evoluo, viajo.”
A última fotografia de Fernando Pessoa, em 1935, feita pelo seu amigo Augusto Ferreira Gomes
De Janeiro a Março entra num estado depressivo, doença e, sobretudo, cansaço, cansaço intenso, que é o tema de toda uma série de poemas de Campos. Bebia cada vez mais, vinho e aguardente.
A 4 de Fevereiro publicou no «Diário de Lisboa», de 4 de Fevereiro, o artigo Associações Secretas contra o projeto de lei do deputado salazarista José Cabral de proibir as “sociedades secretas”; nele toma a defesa da Franco-Maçonaria. Essa iniciativa assinala o seu rompimento com o salazarismo. É, por seu turno, violentamente atacado na imprensa.
No entanto, na carta de 13 de Janeiro, e em trecho durante muito tempo não publicado, a seu próprio pedido, Pessoa afirmava: «Quanto à ‘iniciação’ ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Inicititica nenhuma.» Quer dizer, Fernando Pessoa, que tinha defendido publicamente a Maçonaria, não era (ou não se dizia) mação.
Recusa-se a assistir à cerimônia de entrega dos prêmios do Secretariado da Propaganda Nacional, presidida por Salazar.
Escreveu em 29 de Março o primeiro poema satírico contra Salazar.
A 30 de Março redigiu a sua nota biográfica, onde se apresenta como “conservador anti-reacionário”, “cristão gnóstico” oposto ao catolicismo, membro da Ordem dos Templários”. Foi encontrada entre os seus papéis após a sua morte.
A 5 de Abril a Assembleia Nacional aprovou por unanimidade o projeto que declarava a Maçonaria ilegal.
A 12 de Abril sai uma crítica elogiosa num jornal à Mensagem.
A 26 de Abril escreve um novo poema de Campos: “Estou cansado, é claro…”
A 27 de Abril escreve um poema em francês onde diz à mãe (morta há dez anos) que o seu “petit enfant est plein de larmes et de doutes”.
Na Primavera veio a Portugal em viagem nupcial, depois de quinze anos de ausência, o irmão Luís Miguel. Pessoa manifestou-lhe a intenção de o ir visitar a Inglaterra.
A 2 de Junho escreveu a Elegia na Sombra, que exprime a profunda decepção que sentia ante a situação a que tinha chegado a pátria.
A 6 de Junho é publicada uma crítica hostil numa revista à Mensagem.
A 9 de Junho o governo organizou as Festas de Lisboa para celebrar os “santos de Junho” e conquistar assim as graças do povo; Pessoa escreveu, por seu turno, no mesmo dia, mas com espírito irreverente e corrosivo, três poemas sobre Santo António, São João e São Pedro.
A 29 de Julho escreveu mais um poema anti-salazarista.
A 22 de Agosto, Campos queixa-se num poema do “sono universal” que desce sobre ele e que é o “sono da soma de todas as desilusões”.
A 17 de Setembro escreveu um poema patético do “próprio” Pessoa: “Mãe, não haverá um Deus que me não torne tudo vão?”
A 21 de Outubro escreveu o poema de Campos: “Todas as cartas de amor são rídiculas…” .
A 30 de Outubro decidiu não publicar mais nada em Portugal, para protestar contra o agravamento da censura.
Em Novembro, no número três de «Sudoeste», dirigida por Almada Negreiros, publicou o breve texto de recordações Nós, os de «Orpheu». Nele exalta a loucura de um dos companheiros de 1915, Ângelo de Lima, agora internado num manicómio.
Campos colaborou no mesmo número com Nota ao Acaso,sobre a questão da sinceridade na poesia: é coisa que não existe.
A 26 de Novembro sofreu uma violenta crise de cólicas hepáticas.
Na noite de 27 para 28 de Novembro foi internado no Hospital de S. Luís dos Franceses onde lhe foi diagnosticada uma cólica hepática. É tratado pelo primo, o Dr. Jaime Neves. Na ausência da irmã Henriqueta, imobilizada no Estoril por um acidente, recebe a visita do cunhado, Caetano Dias
A 29 de Novembro escreveu a sua última frase, a lápis e em inglês: «I know not what tomorrow will bring».
A 30 de Novembro, às 20 horas, segundo um testemunho, pediu os óculos, para ver melhor. Morreu às 20 horas e 30 minutos. Presentes o Dr. Jaime Neves e os amigos Francisco Gouveia e Vítor da Silva Carvalho.
Foi sepultado a 2 de Dezembro, pelas 11 horas, no Cemitério dos Prazeres, no jazigo da sua avó, D. Dionísia Seabra Pessoa (Rua 1, Dt. ª, n.º 4371), na presença de umas cinquenta pessoas. O elogio fúnebre foi lido pelo seu amigo Luís de Montalvor, companheiro dos tempos do Orpbeu. O jornal Diário de Notícias de 03.12.1935, consagrou duas colunas ao acontecimento.
Em 1985, ano do cinquentenário da sua morte, mas no dia do seu nascimento, 13 de Junho, o corpo foi trasladado do Cemitério dos Prazeres para o claustro do Mosteiro dos Jerónimos, onde estão os túmulos de outras glórias nacionais, entre elas: Vasco da Gama e Luís de Camões
Fernando Pessoa – Biografia
Fernando Pessoa
Nascimento: 1888 Lisboa
Morte: 1935
Época: Modernismo
País: Portugal
Escritor português, nasceu a 13 de Junho, numa casa do Largo de São Carlos, em Lisboa.
Aos cinco anos morreu-lhe o pai, vitimado pela tuberculose, e, no ano seguinte, o irmão, Jorge.
Devido ao segundo casamento da mãe, em 1896, com o cônsul português em Durban, na África do Sul, viveu nesse país entre 1895 e 1905, aí seguindo, no Liceu de Durban, os estudos secundários.
Frequentou, durante um ano, uma escola comercial e a Durban High School e concluiu, ainda, o «Intermediate Examination in Arts», na Universidade do Cabo (onde obteve o «Queen Victoria Memorial Prize», pelo melhor ensaio de estilo inglês), com que terminou os seus estudos na África do Sul. No tempo em que viveu neste país, passou um ano de férias (entre 1901 e 1902), em Portugal, tendo residido em Lisboa e viajado para Tavira, para contatar com a família paterna, e para a Ilha Terceira, onde vivia a família materna. Já nesse tempo redigiu, sozinho, vários jornais, assinados com diferentes nomes.
De regresso definitivo a Lisboa, em 1905, frequentou, por um período breve (1906-1907), o Curso Superior de Letras. Após uma tentativa falhada de montar uma tipografia e editora, «Empresa Íbis — Tipográfica e Editora», dedicou-se, a partir de 1908, e a tempo parcial, à tradução de correspondência estrangeira de várias casas comerciais, sendo o restante tempo dedicado à escrita e ao estudo de filosofia (grega e alemã), ciências humanas e políticas, teosofia e literatura moderna, que assim acrescentava à sua formação cultural anglo-saxônica, determinante na sua personalidade.
Em 1920, ano em que a mãe, viúva, regressou a Portugal com os irmãos e em que Fernando Pessoa foi viver de novo com a família, iniciou uma relação sentimental com Ophélia Queiroz (interrompida nesse mesmo ano e retomada, para rápida e definitivamente terminar, em 1929) testemunhada pelas Cartas de Amor de Pessoa, organizadas e anotadas por David Mourão-Ferreira, e editadas em 1978. Em 1925, ocorreria a morte da mãe. Fernando Pessoa viria a morrer uma década depois, a 30 de Novembro de 1935 no Hospital de S. Luís dos Franceses, onde foi internado com uma cólica hepática, causada provavelmente pelo consumo excessivo de álcool.
Levando uma vida relativamente apagada, movimentando-se num círculo restrito de amigos que frequentavam as tertúlias intelectuais dos cafés da capital, envolveu-se nas discussões literárias e até políticas da época. Colaborou na revista A Águia, da Renascença Portuguesa, com artigos de crítica literária sobre a nova poesia portuguesa, imbuídos de um sebastianismo animado pela crença no surgimento de um grande poeta nacional, o «super-Camões» (ele próprio?). Data de 1913 a publicação de «Impressões do Crepúsculo» (poema tomado como exemplo de uma nova corrente, o paúlismo, designação advinda da primeira palavra do poema) e de 1914 o aparecimento dos seus três principais heterônimos, segundo indicação do próprio Fernando Pessoa, em carta dirigida a Adolfo Casais Monteiro, sobre a origem destes.
Em 1915, com Mário de Sá-Carneiro (seu dileto amigo, com o qual trocou intensa correspondência e cujas crises acompanhou de perto), Luís de Montalvor e outros poetas e artistas plásticos com os quais formou o grupo «Orpheu», lançou a revista Orpheu, marco do modernismo português, onde publicou, no primeiro número, Opiário e Ode Triunfal, de Campos, e O Marinheiro, de Pessoa ortônimo, e, no segundo, Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa ortônimo, e a Ode Marítima, de Campos. Publicou, ainda em vida, Antinous (1918), 35 Sonnets (1918), e três séries de English Poems (publicados, em 1921, na editora Olisipo, fundada por si). Em 1934, concorreu com Mensagem a um prêmio da Secretaria de Propaganda Nacional, que conquistou na categoria B, devido à reduzida extensão do livro. Colaborou ainda nas revistas Exílio (1916), Portugal Futurista (1917), Contemporânea (1922-1926, de que foi co-diretor e onde publicou O Banqueiro Anarquista, conto de raciocínio e dedução, e o poema Mar Português), Athena (1924-1925, igualmente como co-diretor e onde foram publicadas algumas odes de Ricardo Reis e excertos de poemas de Alberto Caeiro) e Presença.
A sua obra, que permaneceu maioritariamente inédita, foi difundida e valorizada pelo grupo da Presença. A partir de 1943, Luís de Montalvor deu início à edição das obras completas de Fernando Pessoa, abrangendo os textos em poesia dos heterônimos e de Pessoa ortônimo. Foram ainda sucessivamente editados escritos seus sobre temas de doutrina e crítica literárias, filosofia, política e páginas íntimas. Entre estes, contam-se a organização dos volumes poéticos de Poesias (de Fernando Pessoa), Poemas Dramáticos (de Fernando Pessoa), Poemas (de Alberto Caeiro), Poesias (de Álvaro de Campos), Odes (de Ricardo Reis), Poesias Inéditas (de Fernando Pessoa, dois volumes), Quadras ao Gosto Popular (de Fernando Pessoa), e os textos de prosa de Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias, Textos Filosóficos, Sobre Portugal — Introdução ao Problema Nacional, Da República (1910-1935) e Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Do seu vasto espólio foram também retirados o Livro do Desassossego por Bernardo Soares e uma série de outros textos.
A questão humana dos heterônimos, tanto ou mais que a questão puramente literária, tem atraído as atenções gerais. Concebidos como individualidades distintas da do autor, este criou-lhes uma biografia e até um horóscopo próprios.
Encontram-se ligados a alguns dos problemas centrais da sua obra: a unidade ou a pluralidade do eu, a sinceridade, a noção de realidade e a estranheza da existência. Traduzem, por assim dizer, a consciência da fragmentação do eu, reduzindo o eu «real» de Pessoa a um papel que não é maior que o de qualquer um dos seus heterônimos na existência literária do poeta. Assim questiona Pessoa o conceito metafísico de tradição romântica da unidade do sujeito e da sinceridade da expressão da sua emotividade através da linguagem. Enveredando por vários fingimentos, que aprofundam uma teia de polêmicas entre si, opondo-se e completando-se, os heterônimos são a mentalização de certas emoções e perspectivas, a sua representação irônica pela inteligência.
Deles se destacam três: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.
Segundo a carta de Fernando Pessoa sobre a génese dos seus heterônimos, Caeiro (1885-1915) é o Mestre, inclusive do próprio Pessoa ortônimo. Nasceu em Lisboa e aí morreu, tuberculoso, em 1915, embora a maior parte da sua vida tenha decorrido numa quinta no Ribatejo, onde foram escritos quase todos os seus poemas, os do livro O Guardador de Rebanhos, os de O Pastor Amoroso e os Poemas Inconjuntos, sendo os do último período da sua vida escritos em Lisboa, quando se encontrava já gravemente doente (daí, segundo Pessoa, a «novidade um pouco estranha ao carácter geral da obra»). Sem profissão e pouco instruído (teria apenas a instrução primária), e, por isso, «escrevendo mal o português», órfão desde muito cedo, vivia de pequenos rendimentos, com uma tia-avó. Caeiro era, segundo ele próprio, «o único poeta da natureza», procurando viver a exterioridade das sensações e recusando a metafísica, caracterizando-se pelo seu panteísmo e sensacionismo que, de modo diferente, Álvaro de Campos e Ricardo Reis iriam assimilar.
Ricardo Reis nasceu no Porto, em 1887. Foi educado num colégio de jesuítas, recebeu uma educação clássica (latina) e estudou, por vontade própria, o helenismo (sendo Horácio o seu modelo literário). Essa formação clássica reflete-se, quer a nível formal (odes à maneira clássica), quer a nível dos temas por si tratados e da própria linguagem utilizada, com um purismo que Pessoa considerava exagerado. Médico, não exercia, no entanto, a profissão. De convicções monárquicas, emigrou para o Brasil após a implantação da República. Pagão intelectual, lúcido e consciente, refletia uma moral estoico-epicurista, misto de altivez resignada e gozo dos prazeres que o não comprometessem na sua liberdade interior, e que é a resposta possível do homem à dureza ou ao desprezo dos deuses e à efemeridade da vida.
Álvaro de Campos, nascido em Tavira em 1890, era um homem viajado. Depois de uma educação vulgar de liceu formou-se em engenharia mecânica e naval na Escócia e, numas férias, fez uma viagem ao Oriente, de que resultou o poema Opiário. Viveu depois em Lisboa, sem exercer a sua profissão. Dedicou-se à literatura, intervindo em polêmicas literárias e políticas. É da sua autoria o Ultimatum, publicado no Portugal Futurista, manifesto contra os literatos instalados da época. Apesar dos pontos de contato entre ambos, travou com Pessoa ortônimo uma polêmica aberta. Protótipo do vanguardismo modernista, é o cantor da energia bruta e da velocidade, da vertigem agressiva do progresso, de que a Ode Triunfal é um dos melhores exemplos, evoluindo depois no sentido de um tédio, de um desencanto e de um cansaço da vida, progressivos e auto-irônicos.
De entre outros, de menor expressão, destaca-se ainda o semi-heterônimo Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros que sempre viveu sozinho em Lisboa e revela, no seu Livro do Desassossego, uma lucidez extrema na análise e na capacidade de exploração da alma humana.
Quanto a Fernando Pessoa ortônimo, segue, formalmente, os modelos da poesia tradicional portuguesa, em textos de grande suavidade rítmica e musical. Poeta introvertido e meditativo, anti-sentimental, reflete inquietações e estranhezas que questionam os limites da realidade da sua existência e do mundo. O poema Mensagem, exaltação sebastiânica que se cruza com um certo desalento, numa expectativa ansiosa de ressurgimento nacional, revela uma faceta esotérica e mística do poeta, manifestada também nas suas incursões pelas ciências ocultas e pelo rosa-crucianismo.
Figura cimeira da literatura portuguesa e da poesia europeia do século XX, se o seu virtuosismo é, sobretudo inicialmente, uma forma de abalar a sociedade e a literatura burguesas decrépitas (nomeadamente através dos seus «ismos»: paúlismo, interseccionismo, sensacionismo), ele fundamenta a resposta revolucionária à concepção romântica, sentimentalmente metafísica, da literatura. O apagamento da sua vida pessoal não obviou ao exercício ativo da crítica e da polêmica em vida, e sobretudo a uma grande influência na literatura portuguesa do século XX.
Existe presentemente, em Lisboa, a Casa Fernando Pessoa, instalada na última morada do autor.
13 de junho de 1888 – Nasce em Lisboa, às 3 horas da tarde, Fernando Antônio Nogueira Pessoa.
1896 – Parte para Durban, na África do Sul.
1905 – Regressa a Lisboa
1906 – Matricula-se no Curso Superior de Letras, em Lisboa
1907 – Abandona o curso.
1914 – Surge o mestre Alberto Caeiro. Fernando Pessoa passa a escrever poemas dos três heterônimos.
1915 – Primeiro número da Revista “Orfeu”. Pessoa “mata” Alberto Caeiro.
1916 – Seu amigo Mário de Sá-Carneiro suicida-se.
1924 – Surge a Revista “Atena”, dirigida por Fernando Pessoa e Ruy Vaz.
1926 – Fernando Pessoa requere patente de invenção de um Anuário Indicador Sintético, por Nomes e Outras Classificações, Consultável em Qualquer Língua. Dirige, com seu cunhado, a Revista de Comércio e Contabilidade.
1927 – Passa a colaborar com a Revista “Presença”.
1934 – Aparece “Mensagem”, seu único livro publicado.
30 de novembro de 1935 – Morre em Lisboa, aos 47 anos.
Fernando Pessoa – Vida
Fernando Pessoa
Uma visão breve sobre a vida e a obra do maior poeta da língua portuguesa:
QUANDO TUDO ACONTECEU…
1888: Nasce Fernando Antônio Nogueira Pessoa, em Lisboa.
1893: Perde o pai.
1895: A mãe casa-se com o comandante João Miguel Rosa. Partem para Durban, África do Sul.
1904: Recebe o Prêmio Queen Memorial Victoria, pelo ensaio apresentado no exame de admissão à Universidade do Cabo da Boa Esperança.
1905: Regressa sozinho a Lisboa.
1912: Estréia na Revista Águia.
1915: Funda, com alguns amigos, a revista Orpheu.
1918/1921: Publicação dos English Poems.
1925: Morre a mãe do poeta.
1934: Publica Mensagem.
1935: Morre de complicações hepáticas em Lisboa
VOLTA AMANHÃ, REALIDADE
Lisboa. 26 de Novembro de 1935. Pessoa encerra o expediente no escritório de import-export e segue para casa. Debaixo do braço, sempre a sua pasta de cabedal. Antes de chegar ao seu andar na rua Coelho da Rocha, passa pelo bar do Trindade, logo na esquina. Rotina. O amigo vende-lhe fiado.
Chega-se ao balcão e diz: – 2, 8 e 6.
Trindade serve-o: fósforos, um maço de cigarros e um cálice de aguardente. No olhar, cumplicidade. Os fósforos custam 20 centavos, os cigarros 80 e um cálice de aguardente 60.
Pessoa simplifica: 2, 8, e 6 tostões. Trindade já está acostumado. O poeta acende um cigarro e bebe o cálice, um trago só. Retira da pasta uma garrafa vazia, preta. Entrega-a ao Trindade que, discretamente, a devolve cheia.
Com a pretinha bem guardada, Pessoa despede-se. Sai aos tropeções e a recitar:
Bêbada branqueia
Como pela areia
Nas ruas da feira,
Da feira deserta,
Na noite já cheia
De sombra entreaberta.
A lua branqueia
Nas ruas da feira
Deserta e incerta…
A MINHA ALMA PARTIU-SE COMO UM VAZO VAZIO
No quarto passa a noite debruçado à secretária. Confundimo-lo com os livros, papéis, também lápis minúsculos que só ele consegue manusear. O cinzeiro cheio de pontas de cigarro.
Escreve, compulsivamente, ao jovem amigo Casais Monteiro:
“…Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida-real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.”
A carta vai a todo o vapor quando Pessoa começa a receber visitas inesperadas. Caeiro, Reis Campos e Soares. Têm planos, e querem levá-los ao conhecimento do grande poeta. Chegam um a um. É madrugada e já estão todos reunidos. São surpreendidos por um Pessoa emocionado, papéis em punho.
Terá recebido más notícias? perguntam, preocupados. O poeta tenta desconversar. É confuso, perde-se nas palavras, coisa que nunca acontecera antes. Mas também nunca recebera visitas em tão adiantada hora. Muito menos sem combinação prévia. É obra do “Grande Arquiteto do Universo”, pensa.
Então que se cumpra o destino… Aos solavancos:
– Adiei a verdade quanto pude. É chegada a hora de deixar cair a máscara.
Os quatro ansiosos. Quem está sentado levanta-se, quem está de pé senta-se ou passeia pelo quarto.
Pessoa e o seu discurso enviesado, interrompido por dores e gemidos:
– Numa carta confidenciava a um amigo tudo o que agora sinto que devo dizer-vos.
Um gole de coragem e solta:
– Vocês não existem.
Consternação na assistência.
– É isso, vocês não são mais que personagens da minha criação. Morro e levo-os comigo.
– Só pode ser delírio. Desatino. (diz Álvaro de Campos, ofendido).
– Vou-lhes contar como tudo aconteceu. “Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. (…) E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nesta altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num ato, e à máquina de escrever, sem interrupção, nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.”
– Então, todo este tempo não passámos de uma mentira? (pergunta Ricardo Reis).
Bernardo Soares responde:
O poeta é um fingidor
Mente tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente. – Pois esta é a chave, explica Pessoa.- Não aceito. Morra em paz o meu criador, porque eu cá continuarei vivinho, poetando como sempre (desafia Álvaro de Campos).
– Arre! Que a criação agora vira-se contra o próprio criador. Deveria ter suspeitado (lamenta-se Pessoa). E quanto a si, Caeiro?
Gosto de tudo que seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo Álvaro de Campos:
– Não entendo a sua complacência. Não está a ver, Caeiro, que Pessoa usou-nos e, principalmente, usou-o. Compelido a vencer o seu subjetivismo lírico decadentista, venceu-o de forma tão súbita e agressiva que não teve remédio senão dar um nome a esse crítico. É ai que você surge, para salvá-lo.
Caeiro não esconde seu desgosto.
Pessoa então revela:
– Escrevi, com sobressalto e repugnância, o poema oitavo do Guardador de Rebanhos, com a sua blasfêmia infantil e antiespiritualista. A cada personalidade que consegui viver dentro de mim, dei uma índole expressiva, e fiz desta personalidade um autor, com livros, com as ideias, as emoções, e a arte dos quais eu, autor real, nada tenho, salvo o ter sido, no escrevê-las, o médium de figuras que eu próprio criei.
– Você não tinha esse direito (insiste Campos).
Ainda Pessoa:
– Negar-me o direito de fazer isto seria o mesmo que negar a Shakespeare o direito de dar expressão à alma de Lady Macbeth. Se assim é das personagens fictícias de um drama, é igualmente lícito das personagens fictícias sem drama, pois que é lícito porque elas são fictícias e não porque estão num drama. Parece escusado explicar uma cousa de si tão simples e intuitivamente compreensível. Sucede, porém, que a estupidez humana é grande, e a bondade humana não é notável.
Ricardo Reis, que assistira mudo à revelação, pergunta:
– Mas por que é que você nos inventou? Qual a origem de tudo?
Pessoa, pacientemente, tenta explicar-lhe:
– É o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurastênico. Seja como for, a vossa origem mental está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Se eu fosse mulher – na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas – cada poema do Álvaro de Campos (o mais histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia…
A resposta não convence, não agrada. Longe está o tempo em que fora loquaz. Agora fazem-lhe ouvidos moucos. Pessoa é todo angústia. O silêncio que o rodeia. A incompreensão, mágoa e até o desprezo dos seus outros “eu”. Vira-se para um último apelo. Fica só com a sua verdade.
VOU EXISTIR
Quando pensa deitar-se, já é outro dia. Batem à porta. É o “sô” Manacés, o barbeiro. Pessoa mal lhe dá os bons-dias. O pigarro prende-lhe a fala. Calças a cair do corpo, aponta para a pretinha. Manacés compreende o sinal. Vai ao Trindade enchê-la, ainda nem afiara a navalha. Barba feita, o poeta vai para o escritório. Faz algumas traduções. Almoça no Martinho da Arcada e, antes de voltar ao trabalho, entra numa taberna, meio titubeante. Pensa no seu médico que o proibira de beber.
Então questiona-se:
Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! vou existir.
E-xis-tir…
E-xis-tir…
Dêem-me de beber, que não tenho sede!
Noite de 27 para 28 de Novembro. Pessoa encolhido na sua cama, as mãos a pressionarem o abdómen, cólica hepática. Geme, dor. Manhã de 28. Pessoa é transportado para o Hospital de S. Luís dos Franceses. A dor aperta, sufoca. O poeta agoniza. Implora pelo fim de tanto sofrimento. Aplicam-lhe um analgésico. Sob o efeito da droga, reflete sobre a vida que ameaça escapar-lhe agora.
Ó MÁGOA REVISITADA
1888. 13 de Junho. Dia de Santo António, padroeiro da cidade. 15h20. As ruas de Lisboa tomadas por uma procissão. No número 4 do Largo São Carlos a agitação é ainda maior. A açoriana Maria Magdalena Pinheiro Nogueira banhada em suor. Crava os dedos no travesseiro, dores de parto. O marido, Joaquim de Seabra Pessoa, põe-se a ouvir música nas traseiras da casa. Lá fora um Padre reza missa. Dentro do quarto, um bebé a chorar. Nasce Fernando António Nogueira Pessoa. O sol em Caranguejo. “Será uma criança dotada de sensibilidade e humanismo”, arrisca uma das tias.
Aos seis anos perde o pai, funcionário público do Ministério da Justiça e crítico de música do Diário de Notícias. Pouco depois morre o irmão Jorge, com pouco mais de seis meses. Muito cedo a solidão no dia-a-dia de Pessoa.
Inventa um amigo: um certo Chevallier de Pas, por quem escreve cartas dele a ele mesmo.
Aos sete anos muda-se para Durban. A mãe casara, por procuração, com o comandante João Miguel Rosa, cônsul de Portugal na colônia inglesa de Natal, África do Sul. Deste casamento nascem cinco filhos. Uma nova família para Pessoa. Viverá naquela cidade até aos 17 anos. Em 1896 entra para West Street, onde tem aulas de inglês e faz a sua primeira comunhão. Em escolas inglesas aprende técnicas de comércio. Destaca-se como um dos melhores alunos. Em 1904 conclui a sua Intermediate Examination em Artes. Ganha o prêmio Rainha Vitória de estilística inglesa no exame de admissão à Universidade do Cabo. Escreve poesia e prosa, sempre em inglês. Lê Milton, Byron, Shelley, Tennyson e Poe. Conhece Pope e a sua escola.
1905. Pessoa decide voltar a Lisboa para fazer o Curso Superior de Letras. Parte a bordo do navio alemão Herzog. Instala-se na casa de sua avó Dionísia. A língua portuguesa revela-se como “estrangeira”, com a novidade do “estranho”, se bem que a entenda perfeitamente. Ou seja, ao seu ouvido o português não está ainda desgastado pelo uso quotidiano, bom dia, boa tarde, como está? passou bem? e a mãezinha está melhor? está melhorzinha, muito obrigado ! É um bloco de mármore que apetece esculpir, literatura. Inscreve-se no curso. Descobre Cesário Verde e Baudelaire.
1907. Desiste do curso.
A avó morre. Com a herança, Pessoa monta uma tipografia: Ibis-Tipográfica Editora-Oficinas a Vapor. Mal chega a funcionar. Frustração.
Falhei em Tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa…
O poeta entra no comércio como tradutor de cartas e depois correspondente estrangeiro. Monotonia. Dá as suas escapadelas sempre que pode.
Levanta-se, pega no chapéu e avisa: “Vou ao Abel”.
O seu chefe descobre que afinal o Abel é o depósito da casa vinícola Abel Pereira da Fonseca, onde Pessoa vai tomar uns copos de aguardente. É apanhado “em flagrante delitro”. O chefe não se importa, pois “volta sempre mais em forma para trabalhar”. O emprego é a meio-tempo.
A outra metade é para a literatura: Camões, António Vieira, Antero de Quental e os simbolistas. Começa a escrever versos em português. Surge a Renascença Portuguesa, movimento saudosista de Teixeira de Pascoaes. No Porto, o grupo funda a revista Águia. Pessoa colabora. Publica uma série de artigos, entre os quais “A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada”.
Também faz crítica no semanário Teatro. Trava amizade com Mário de Sá-Carneiro, Luís de Montalvor, Armando Cortes-Rodrigues, Raul Leal, António Ferro, Alfredo Guisado e o pintor Almada Negreiros.
Não falta às tertúlias: Café Chiado, Montanha, A Brasileira, Os Irmãos Unidos.
Com este grupo Pessoa funda o Orpheu, revista de vanguarda em sintonia com os novos movimentos europeus: futurismo, orfismo, cubismo… A publicação revela nomes como Santa-Rita Pintor e Ângelo de Lima, poeta marginal internado em manicómio. Orpheu não chega ao terceiro número. Porém bastaram dois para afrontar os conservadores das Letras.
Farto do misticismo transcendental, Pessoa sente-se recompensado.
A um amigo escreve: Em ninguém que me cerca eu encontro uma atitude para com a vida que bata certo com a minha íntima sensibilidade, com as minhas aspirações, com tudo quanto constitui o fundamental e o essencial do meu íntimo ser espiritual.
Encontro, sim, quem esteja de acordo com atividades literárias que são apenas dos arredores da minha sinceridade. E isso me basta. De modo que à minha sensibilidade cada vez mais profunda, e à minha consciência cada vez maior da terrível e religiosa missão que todo o homem de génio recebe de Deus com o seu génio, tudo quanto é futilidade literária, mera arte, vai gradualmente soando cada vez mais a oco e a repugnante.
OS OUTROS POETAS
1914. Pessoa conhece Alberto Caeiro, homem “louro sem cor, olhos azuis”. Nascera em Lisboa em 1888, mas vive no Ribatejo. Não tem profissão. Instrução, pouca. Da quinta de uma velha tia lança o seu olhar sobre o mundo. Simples, bucólico, escreve O Guardador de Rebanhos, O Pastor Amoroso e uma parte dos Poemas Inconjuntos.
Em carta a um amigo, Pessoa revela: Desculpe-me o absurdo da frase: Aparecera em mim o meu mestre.
(…) Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me: Aqui estou!
Pessoa respira e transpira poesia, atrai os poetas. Conhece o vanguardista Álvaro de Campos, autor de Ode Triunfal, Ode Marítima e de Ultimatum. Sujeito alto, cabelo pró liso, risca ao lado, monóculo. Nascera em Tavira em 1890. Concluíra o liceu em Portugal e depois seguira para Glasgow na Escócia, onde se formara em engenharia mecânica e naval. Escrevera Opiário, poema irônico sobre o ópio, o exotismo, decadência. Em Lisboa, dedicara-se apenas à literatura, e às polêmicas modernistas. Escrevera também em alguns jornais sobre a atualidade política. Para Pessoa, Álvaro não passava de um tardo-simbolista blasé, burguês culto e entediado. Campos também é discípulo de Caeiro. Mas ao contrário da serenidade de Caeiro, opta pela ética do dinamismo e da violência.
Ah! a selvajaria desta selvajaria! merda
Pra toda a vida como a nossa, que não é nada disto!
Eu pr’aqui engenheiro, prático à força, sensível a tudo,
Pr’aqui parado, em relação a vós, mesmo quando ando;
Mesmo quando ajo, inerte; mesmo quando me imponho, débil;
Estático, quebrado, dissidente, cobarde da vossa Glória,
Da vossa grande dinâmica estridente, quente e sangrenta!
Pessoa dedica-se por inteiro às novas amizades. O convívio com poetas tão distintos dá mais cor ao seu dia-a-dia cinzento. Um outro escritor fará parte deste rol de artistas. Num destes restaurantes de pasto,(…) o poeta conhece um homem que aparentava 30 anos, magro, mais alto que baixo, curvado exageradamente quando sentado. Passaram a cumprimentar-se e logo se tornam amigos. Soares dá ao poeta o seu Livro do Desassossego, um conjunto de escritos, de fronteiras pouco nítidas, entre fragmento autobiográfico, a confissão, a introspecção psicológica, a descrição paisagística, a reflexão, o poema em prosa.
Pessoa tem uma desavença com Campos. A jovem Ophélia Queiroz, que conhecera num dos escritórios da Félix Valadas & Freitas, está na origem do conflito. Aos 20 anos ela desperta logo o interesse no poeta. A relação estremece quando Pessoa e Ophélia começam a namorar. Passeiam de mãos dadas, trocam cartas e bilhetinhos. Ela sente-se hostilizada pelo amigo de Fernando. Campos teme que, por causa de Ophélia, Pessoa se distancie da poesia. Talvez influenciado pelo apelo, Pessoa acaba por desistir do romance.
Ah! a selvajaria desta selvajaria! merda
Pra toda a vida como a nossa, que não é nada disto!
Eu pr’aqui engenheiro, prático à força, sensível a tudo,
Pr’aqui parado, em relação a vós, mesmo quando ando;
Mesmo quando ajo, inerte; mesmo quando me imponho, débil;
Estático, quebrado, dissidente, cobarde da vossa Glória,
Da vossa grande dinâmica estridente, quente e sangrenta!
Junho de 1914. Outro poeta surge na vida de Pessoa. Já soubera da sua existência dois anos antes. Ricardo Reis, estatura média, embora frágil não parecia tão frágil como era, de um vago moreno mate. Um ano mais velho que Pessoa, este médico portuense é defensor da monarquia, passa um tempo exilado no Brasil depois da proclamação da República. Tradicional, conservador, parte do classicismo para abordar a inquietação humana, interrogar o sentido do Universo.
Escreve intensamente: onze odes num mês.
E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade,
Como quem compõe roupas
E outrora compúnhamos
Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando nós pensamos
Naquilo que já fomos.
E há só noite lá fora.
Pessoa dedica-se por inteiro às novas amizades. O convívio com poetas tão distintos dá mais cor ao seu dia-a-dia cinzento. Um outro escritor fará parte deste rol de artistas. Num destes restaurantes de pasto,(…) o poeta conhece um homem que aparentava 30 anos, magro, mais alto que baixo, curvado exageradamente quando sentado. Passaram a cumprimentar-se e logo se tornam amigos. Soares dá ao poeta o seu Livro do Desassossego, um conjunto de escritos, de fronteiras pouco nítidas, entre fragmento autobiográfico, a confissão, a introspecção psicológica, a descrição paisagística, a reflexão, o poema em prosa.
Pessoa tem uma desavença com Campos. A jovem Ophélia Queiroz, que conhecera num dos escritórios da Félix Valadas & Freitas, está na origem do conflito. Aos 20 anos ela desperta logo o interesse no poeta. A relação estremece quando Pessoa e Ophélia começam a namorar. Passeiam de mãos dadas, trocam cartas e bilhetinhos. Ela sente-se hostilizada pelo amigo de Fernando. Campos teme que, por causa de Ophélia, Pessoa se distancie da poesia. Talvez influenciado pelo apelo, Pessoa acaba por desistir do romance.
MISTÉRIO
1916. Mário de Sá-Carneiro suicida-se em Paris. Pessoa atordoado. Em carta à sua tia Anica diz ter sentido o suicídio à distância. Tormentos. Começa a procurar respostas nas ciências ocultas. “Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos e em existências de diversos graus de espiritualidades”, revela. Entusiasma-se com as Sociedades secretas (Rosa-Cruz, Maçonaria, Templários). Conhece o espiritismo, a magia, a cabala. Traduz para o português muitos livros da Coleção Teosófica e Esotérica. Sob a influência do ocultismo escreverá O último sortilégio e Além-Deus. Inicia-se e cultiva, sobretudo, a astrologia. Pensa até em estabelecer-se em Lisboa como astrólogo encartado. Caeiro é contemplado com um mapa astral feito pelo poeta.
A poesia de Pessoa começa a despertar o interesse de críticos. O Times e o Glasgow Herald dedicam espaço às duas plaquettes de poemas ingleses publicados em 1918. Escreve nas mais importantes revistas literárias portuguesas. Em Contemporânea publica O Banqueiro Anarquista, Mar Português, O Menino da Sua Mãe, Lisbon Revisited…
Em 1928 intervém na política. No Interregno (manifesto político do Núcleo de Ação Nacional) o poeta defende a ditadura salazarista. Um equívoco. Pessoa não alinha com o despotismo e o ultranacionalismo do regime vigente. Mais tarde, compõe três textos de sátira ao Estado Novo.
Um deles dirigido ao seu próprio chefe:
António de Oliveira Salazar
Três nomes em sequência regular…
António é António
Oliveira é uma árvore.
Salazar é só apelido.
Até aí está tudo bem.
O que não faz sentido
É o sentido que isso tudo tem.
No mesmo ano Pessoa mete-se na publicidade.
A Coca-Cola acaba de entrar no mercado português e o poeta fica encarregado de criar um slogan para o produto: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”. A mercadoria vende como água. Mas proíbem a sua representação em Portugal. A Direção de Saúde entende que o slogan é o próprio reconhecimento da sua toxidade.
Nos anos seguintes Pessoa mergulha na astrologia. Inicia correspondência com o mago inglês Aleister Crowley, famoso em todo o mundo. Crowley vem a Lisboa para conhecer Pessoa e desaparece misteriosamente. Pessoa colabora na solução do que a polícia passa a chamar de crime.
A respeito de toda esta confusão, Pessoa escreve a um amigo: “O Crowley, que depois de suicidar-se passou a residir na Alemanha, escreveu-me há dias e perguntou-me pela tradução, ou antes, pela publicação da tradução.” Pessoa refere-se à poesia do mago, “Hino a Pã”, que ele publica em 1931.
1934. Pessoa publica Mensagem, poema sobre a história de Portugal. Esotérico, místico. Será o único volume dos seus versos em português, publicado durante a sua vida. Ganha o prêmio da segunda categoria do Secretariado de Propaganda Nacional.
DESENCONTRO
1935, 30 de Novembro. Inquieto, a remexer-se na cama, Pessoa arde em febre
Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Estou hoje vencido, como soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer.
O capelão tenta acalmá-lo. Ele insiste em chamar Caeiro, Reis, Campos e Soares. Como que ouvindo o chamamento do seu criador, os poetas seguem para o hospital. Pessoa em agonia. Repuxa o lençol, contrai-se. Dá-me os óculos, os meus óculos, pede. Prepara-se para o último olhar sobre a sua criação. E eles que não chegam. Mas pressente, eles vêm, Ah se vêm.
Caeiro, Reis, Campos e Soares entram de rompante. Porém tarde, já morto o poeta.
Sobram uns rabiscos num papel:
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido,
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo.
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Fonte: br.geocities.com/www.vidaslusofonas.pt/www.bibvirt.futuro.usp.br/www.biografia.inf.br
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